Quem manda no meu afeto?

Nos últimos dias, a imprensa tem reiteradamente comentado a respeito de proposta legislativa que proíbe o casamento entre pessoas do mesmo sexo. Pode parecer estranho que, em pleno século 21, em um mundo no qual o ódio e o desamparo espraiam-se entre nós, vitimando aqueles mais vulneráveis em nossa sociedade, alguns pretendam restringir o amor e a união entre iguais.

Trata-se do Projeto de Lei nº 5167/2009, de autoria dos deputados Capitão Assumção (PSB-ES) e Paes de Lira (PTC-SP), que tem como escopo alterar o artigo 1521 do Código Civil Brasileiro (lei nº 10.406/2002) e estabelecer “que nenhuma relação entre pessoas do mesmo sexo pode equiparar-se ao casamento ou a entidade familiar”, tendo sido anexado ao Projeto de Lei nº 580/2007, de autoria do então deputado Clodovil Hernandes (PTC-SP), que dispunha em sentido contrário.

A proposta tem como justificativa um conceito ultrapassado e equivocado da família, tendo associado o casamento heterossexual a preceitos bíblicos que ignoram as individualidades e o amor genuíno entre as pessoas.

Não se está aqui a discutir a melhor interpretação para as passagens do Antigo Testamento, pois não é este o cerne da questão, propondo-se esta resenha a alertar ao leitor que não cabe ao Parlamento legislar em detrimento de significativa parcela da população que estaria sendo relegada a um plano secundário na escala da defesa dos direitos humanos.

Na definição das Organizações das Nações Unidas (ONU), direitos humanos são “garantias jurídicas universais que protegem indivíduos e grupos contra ações ou omissões dos governos que atentem contra a dignidade humana”.

Ou seja, tratam-se de direitos e garantias relacionadas aos mais elementares e sublimes valores da vida, a exemplo da liberdade, da saúde, da segurança, do trabalho decente, e de tudo o mais que possa conferir aos cidadãos e cidadãs uma vida digna.

Não estaria a liberdade de amar e de viver ao lado de quem se ama incluída nesse conceito?

A restrição que se pretende impor ao amor entre iguais, agora na seara legislativa, já campeia entre os mais intolerantes e autoritários, elevando as estatísticas da violência decorrente dos crimes de ódio, e da morte, por falta de acesso aos serviços de saúde, por depressão e suicídio.

Na contramão da evolução do pensamento da sociedade brasileira, e ignorando que a homoafetividade remonta a milênios, constituindo traço característico da natureza humana, o relator deputado pastor Eurico (PL-PE) emitiu farisaico parecer favorável ao texto, no âmbito da Comissão de Previdência, Assistência Social, Infância, Adolescência e Família (CPASF), utilizando-se, para tanto, de raivoso e vingativo sentimento para tangenciar a discussão que verdadeiramente importa.

Disse que a Corte Suprema exerceu atividade legiferante incompatível com as suas funções constitucionais, por ocasião do julgamento conjunto da ADI 4277 e da ADPF 132, ao reconhecer, por unanimidade, a união homoafetiva como entidade familiar, sujeita às mesmas regras e consequências da união estável heteroafetiva, daí resultando a necessidade de “bloquear o ativismo judicial do Supremo Tribunal Federal, que, em que pese devesse ser o guardião da Constituição”.

O relator deixa de mencionar, entretanto, que diversos projetos de lei, em sentido contrário, ou seja, reconhecendo o direito e regulamentando a união homoafetiva, dormitam nas gavetas do Congresso Nacional há décadas, situação que reclamou a atuação da Corte Suprema para suprir a omissão do Estado na garantia de direitos a pessoas que constituem sociedade conjugal, inclusive, com implicações patrimoniais e sucessórias.

Alguns parlamentares comungam da falsa premissa de que a proibição atende aos anseios do povo brasileiro, como se tivéssemos dados estatísticos fidedignos a esse respeito, o que constitui uma falácia, pelos motivos que seguem:

“Primeiro, porque é conhecida a dificuldade da autodeclaração sobre característica individual que ainda causa espanto e tabu em alguns, ensejando até perseguição midiática e violências físicas que, muitas vezes, ceifam as vidas dessas pessoas;”.

Não temos dados confiáveis que possam aferir o tamanho dessa população, pois a primeira pesquisa realizada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), a Pesquisa Nacional de Saúde (PNS-2019), revelou que apenas 1,2% dos entrevistados se autodeclararam homossexuais, ao passo que 0,7%, bissexuais, percentuais que, somados, ainda são inferiores àqueles alusivos aos que se recusaram a responder à pergunta (2,3%), ou que não souberam fazê-lo (1,1%).

Tem algo estranho e pouco confiável nesses dados, circunstância que é admitida pelo próprio instituto na apresentação da pesquisa, como se pode inferir aqui.

Segundo, não seria o tamanho da população atingida pela proposta que a legitimaria, já que vivemos em uma democracia substantiva, na qual a maioria numérica não pode subjugar os direitos e garantias das minorias, consubstanciadas em sólido arcabouço jurídico constituído pela Constituição e por tratados e convenções internacionais em vigor em nosso território, direitos humanos, portanto.

Ora, a Constituição Cidadã de 1988 consagrou o princípio da não discriminação ao dispor, em seu artigo 3º, IV, ser um dos objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil “promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação”.

Esse princípio é reafirmado por outros dispositivos constitucionais que estabelecem, inclusive, a laicidade do Estado, ou seja, não podem os cidadãos e cidadãs brasileiras ter a fruição dos seus direitos condicionada, restringida, ou eliminada em razão de convicções e crenças religiosas, sendo o que se depreende, v.g., do disposto no artigo 5º, VI e VIII, sem prejuízo de outros que reafirmam a impessoalidade no tratamento dispensado a todos os brasileiros e brasileiras (artigos 19, I, 143, §1º, 210, §1º, e 226, §2º, todos da Carta Magna vigente).

A propósito deste último, equivoca-se o relator ao subordinar a validade do casamento aos valores morais e religiosos, na medida em que o legislador constituinte apenas reconheceu a validade do casamento religioso, desde que atendidos os preceitos da lei civil (artigo 226, §2º, da CF), sendo desarrazoada a interpretação de que somente o casamento religioso seria reconhecido pelo Estado, não havendo no texto do dispositivo constitucional referido qualquer alusão a esta soberania dos valores tidos como morais em detrimento de outros de quem não professa esta ou aquela fé.

Por fim, tratar a família como a entidade constituída exclusivamente a partir da união de um homem com uma mulher é uma interpretação inconstitucional, restritiva e que violenta todas as formações familiares existentes, pois a realidade vivenciada em nossa sociedade é divorciada desse conceito tão limitado, havendo milhares de lares em que pessoas do mesmo sexo compartilham o amor em suas múltiplas vivências, criando, inclusive, em muitos deles, filhos e filhas destinatárias de proteção, cuidados e carinho de pais e mães, assim como da sociedade e do Estado brasileiro.

Nesse sentir, embora as expectativas sejam de insucesso dessa vil proposta, a discussão que a todos ocupa no momento é totalmente descabida, na medida em que vivemos momento difícil em nosso país, com necessidades urgentes de diminuição da desigualdade social e do crescimento da economia, da eliminação do clima de insegurança, de maior respeito às minorias, e de consolidação da nossa democracia ainda tão jovem e ameaçada.

Por tudo, por todos e todas, faço coro com o poeta Lulu Santos, cantando:

“E a gente vive junto
E a gente se dá bem
Não desejamos mal a quase ninguém
E a gente vai à luta
E conhece a dor
Consideramos justa toda forma de amor.”

Por André Machado Cavalcanti

Fonte: ConJur