Denise Fincato*
Miopia é a dificuldade em ver de longe. Atualmente, sabe-se que costuma acometer membros de um mesmo grupo familiar e que não há maneira de evitá-la, mas é possível corrigi-la. Entretanto, nada me assombra mais do que a miopia em sentido figurado, aquela em que o sujeito carece de perspicácia para perceber e entender as coisas.
Estou na Itália para atenuar os efeitos da minha miopia, a figurada. Pretendo utilizar outras lentes para observar o Brasil, tentando ver melhor os horizontes que a proximidade não me permitia vislumbrar. Da mesma forma, pretendo ver de perto o que ocorre aqui pois, lá do Brasil, não conseguia ter a exata noção de todos os elementos, especialmente quando em movimento. Fixo o olhar nas relações de trabalho italianas, preciso compreender a conjuntura social e econômica em que ocorrem. Por vezes, o que parece não fazer sentido, quando contextualizado, o faz (e vice-versa).
Nosso berço trabalhista foi moldado de acordo com o que existia nos países europeus, entre eles a Itália, com seus documentos fundamentais forjados no início da 1.ª Revolução Industrial, época em que o emprego era o destinatário de todas as atenções e proteções estatais, pois fazia girar a economia. O mundo mudou. A Itália mudou e reflito sobre o Brasil.
Aqui, me deparo com uma sucessão de reformas trabalhistas, as últimas entre os anos 2012 e 2017, a partir das quais a legislação ficou repleta de novos pactos, não empregatícios ou empregatícios com outras roupagens, que atentam para a escassez do emprego, a transnacionalização do trabalho e o novo perfil do trabalhador.
O Livro V do Código Civil italiano (1942) é destinado ao contrato de trabalho e seus contratantes, prescrevendo questões genéricas, inclusive em âmbito coletivo, denotando um intenso diálogo entre as fontes jurídicas. O Statuto dei Lavoratori(1970) nasceu sob a onda constitucionalista.
No fim do século 20, a legislação trabalhista, até então focada na proteção do empregado subordinado, cede espaço a alternativas contratuais que atendem à necessidade de flexibilidade nas relações de trabalho. Em um curto período, ocorrem reformas importantes, tais como a de 2003, que privilegiou a autonomia negocial individual, a de 2008, que atualiza e reúne a legislação de saúde e higiene, instrumentalizando a fiscalização estatal, a de 2009, que estabelece critérios e mecanismos para a representação sindical e eficácia dos instrumentos coletivo.
Além disso, é possível citar a de 2010, que insere a conciliação e a arbitragem no processo trabalhista, a de 2012, Reforma “Fornero”, que responde à pressão das instituições europeias, reformando o sistema previdenciário e flexibilizando ainda mais as relações de trabalho, a de 2015, a “Jobs Act”, bastante ampla, que reforma o sistema de contribuição social, racionaliza a fiscalização do trabalho, cria políticas ativas de combate à desocupação e racionaliza o processo trabalhista e, por fim, a mais recente, de 2017, chamada “Jobs Act do Trabalho Autônomo”, pois estende algumas proteções a autônomos – não subordinados e não autoempreendedores – além de regular o lavoro agile – trabalho sem horário ou local pré-contratados.
Ainda, dado o agravamento da crise italiana e a necessidade de constante intervenção estatal, entre os anos de 2008 e 2012 foram editadas várias normas, não estritamente leis, que visavam garantir renda mínima aos trabalhadores diante da suspensão ou extinção de seus contratos, além de incentivar os empregadores à manutenção de postos de trabalho. Medidas austeras também afetaram as relações de trabalho com a Administração Pública.
A Itália enfrenta variáveis importantes no desenvolvimento e execução de políticas públicas e de Estado, citando-se a interferência da União Europeia, o envelhecimento de sua população, a livre circulação dos europeus e os trabalhadores extracomunitários (migrantes e refugiados).
Atualmente, ainda há desemprego e desocupação em número maior do que os italianos gostariam. Mas, certamente, a realidade de 2018 é bastante diferente da de 2008.
Volto o olhar para o Brasil e percebo que nos falta a percepção de que estamos em crise. Multidimensional, multifatorial e multiefeitos. Da crise ética, à política, passando pela econômica e financeira, vivemos em crise. Severa crise. Se fossemos europeus, talvez nossos pares nos alertariam de nossa condição e forçariam posturas, revisões e ajustes, pois todos afundam juntos na Europa.
Vivemos desigualdades abissais e sustentamos estruturas públicas mais gigantes que o próprio Brasil. Deixamos a descoberto questões fundamentais (educação, saúde e segurança, p.ex.), eis que a estrutura estatal é intocável. Nas relações privadas de trabalho ainda há muito a percorrer. A reforma trabalhista de 2017, primeira revisão legislativa com este porte desde 1943, não trouxe a modernidade que prometeu. Exatamente: não foi suficiente.
Nossa miopia nos impediu a constatação de que há novas formas de trabalho, adequadas ao novo cenário produtivo e ao novo perfil de trabalhador. Não nego que reformas podem responder à crise econômica. Mas também podem corrigir a crise de identidade de um texto legislativo, que já não se adequa mais aos fatos sociais para que originalmente pensado.
Analisando diversos países, estudando os pormenores de suas trajetórias reformistas, posso concluir que não há milagre, quanto mais a curto prazo. Mais: enquanto as medidas forem imperceptíveis a alguém, a proposta ainda não terá sido suficiente. Todos têm que estar envolvidos num projeto de Nação e, para apostar validamente, é preciso pagar um preço. É do jogo. É da vida.
Só a lente certa permite fazer reformas com foco no utilitarismo, onde os atos têm suas consequências programadas e se destinam, sempre, ao bem do máximo possível de pessoas, mesmo que em detrimento de individualidades. Trata-se da correção da vista curta, em sentido figurado, mas com efeitos reais.
*Pós-Doutora em Direito do Trabalho pela Universidad Complutense de
Madrid (España). Doutora em Direito pela Universidad de Burgos (España).
Mestre e Bacharel em Direito pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos.
Professora Pesquisadora do PPGD da PUCRS. Acadêmica Titular da Cadeira
nº 34 da ASRDT. Advogada e Consultora Trabalhista, Sócia de Souto Correa,
Cesa, Lumertz e Amaral Advogados.
–Republicado do blog Fausto Macedo, do Estadão.