Contribuição previdenciária sobre o terço de férias e segurança jurídica

Por Guilherme Peloso Araujo

No dia 28 de agosto, foi encerrado o julgamento virtual do Recurso Extraordinário nº 1.072.485 pelo Supremo Tribunal Federal, no qual se declarou a constitucionalidade da incidência da contribuição previdenciária patronal sobre o terço constitucional de férias; em decisão por maioria, houve divergência apenas do ministro Edson Fachin.

Embora o RE aguardasse julgamento com repercussão geral reconhecida desde fevereiro de 2018, até a última sexta-feira a não incidência da contribuição sobre o terço de férias era assunto pacificado em favor do contribuinte, já que o Superior Tribunal de Justiça, afirmado a sua tradicional jurisprudência (iniciada no ano 2009), fixou o entendimento no julgamento do REsp 1.230.957, realizado no ano de 2014 e submetido à sistemática dos recursos repetitivos. Ainda, como apontou o ministro Fachin em seu voto, havia inúmeros precedentes em que o STF apontava que a discussão da incidência específica da contribuição não gozava de repercussão geral, uma vez que a sua análise, deveria ser feita apenas à luz lei criadora do tributo, e não da repartição constitucional da competência.

A posição do ministro Fachin está calcada no fato de que tese militada pelos contribuintes nunca esteve fundamentada em aspectos constitucionais, mas apenas nos critérios determinados pela Lei nº 8.212/91 para a incidência do tributo. A constitucionalidade dessa lei é pressuposta na discussão, o que afastava a natureza constitucional da discussão, investindo o STJ da competência para a última palavra sobre a controvérsia.

A recente decisão do STF causa ruptura em um sistema que desde 2009 proferia decisões em um sentido diferente do que será doravante praticado, submetendo milhares de contribuintes à difícil situação de ter que recolher tributo que podem não estar pagando há mais de dez anos.

Isso nos causa uma reflexão que não se refere, exatamente, ao mérito da decisão, mas ao papel jurídico-político-social da nossa Suprema Corte e a forma do seu exercício.

Isso porque ao Supremo Tribunal Federal não é permitido escolher as matérias sobre as quais os seus julgadores queiram decidir. Considerando questões tributárias de natureza federal, há na Constituição Federal uma clara repartição de competências entre o STF, que deverá decidir sobre infrações a normas constitucionais, e o STJ, que deverá decidir sobre infrações à lei federal.

Essa regra básica, per si, já traz à tona uma impropriedade deste julgamento pelo Supremo Tribunal Federal. Sendo amplamente sabido que a Constituição Federal não cria tributos, mas apenas autoriza os entes federados a criá-los — o que pode ser feito usando-se apenas uma parcela do fato econômico autorizado pela CF, de maneira que a lei federal não precisa tributar a totalidade da “folha de salários e demais rendimentos do trabalho” —, reconhecer que à luz da norma constitucional o terço de férias pode sofrer a incidência não significa, necessariamente, que à luz da lei essa incidência deverá acontecer, já que a Lei nº 8.212/91 estabelece base de cálculo absolutamente reduzida se comparada à totalidade da “folha de salários”.

Assim, afirmar, aos olhos da Constituição, que a verba pode ter incidência, não exclui o dever de o STJ analisar essa incidência à luz da Lei específica. Não cabe admitir a “avocação” da competência do STJ pelo STF para avaliar o assunto à luz de lei federal. Sobrepor a decisão tomada pelo Supremo Tribunal Federal à decisão tomada pelo Superior Tribunal de Justiça significa, neste caso, desrespeitar a distribuição constitucional de competência entre essas cortes.

Entendemos, contudo, que o debate mais importante a ser travado está na respeitabilidade de que o Poder Judiciário deve gozar perante os cidadãos brasileiros. O contribuinte brasileiro pode confiar no Judiciário que tem?

O Poder Judiciário estabelecido pela Constituição Federal é uno, de maneira que a sua organização entre tribunais é realizada para que a prestação jurisdicional seja realizada de maneira mais eficiente e isenta, limitando o dever-poder outorgado aos juízes que compõem o sistema. O contribuinte, portanto, não apresenta um pedido a um juízo específico, ao STJ ou ao STF, mas ao Poder Judiciário.

Dessa forma, cada órgão julgador deveria exercer a jurisdição com a ciência de que a sua atuação representa, apenas, o funcionamento da uma engrenagem de um magnífico sistema, que ao final entregará a prestação jurisdicional definitiva, protegida pelo trânsito em julgado.

Isso significa que é esperado que o cidadão avalie as manifestações do Poder Judiciário e nelas confie, seja para praticar condutas, seja para executar provisoriamente as decisões jurisdicionais que lhe favoreçam. Na outra mão, cabe ao Judiciário a responsabilidade de manter a coerência entre as suas decisões e a estabilidade da jurisprudência, de maneira a uniformizar o entendimento sobre as normas constitucionais e legais.

Veja-se, nesse contexto, que a principal finalidade constitucional do STF e do STJ é a uniformização de entendimentos divergentes sobre a constituição e sobre a lei federal.

A grande questão que envolve a decisão do STF sobre o terço de férias está em saber se o contribuinte que confiou, por anos, na jurisprudência do Poder Judiciário, formada pelo posicionamento de mérito do STJ e pelas recorrentes negativas de repercussão geral em temas análogos, poderá ser prejudicado.

Vale frisar: a resposta oficial do sistema judiciário para a questão, praticada desde 2009, acaba de ser alterada, prejudicando, potencialmente, milhares de contribuintes que nela confiaram.

Terá vez, então, a primeira grande discussão envolvendo a aplicabilidade do artigo 23 da LINDB, que estabelece efeitos jurídicos para as alterações jurisprudenciais que agravem direitos dos particulares em favor da segurança jurídica. Ainda, será importante a pouco comentada decisão do STJ no REsp nº 1.596.978 que, apesar de posteriormente reformada, protegeu o contribuinte que pautou sua conduta pela “jurisprudência vigente”.

Assim, em pouco tempo, caberá ao próprio Poder Judiciário dizer sobre como nós, contribuintes, devemos nos relacionar com as suas manifestações, nelas confiando ou delas desconfiando.

FONTE: CONSULTOR JURÍDICO (CONJUR)

*Guilherme Peloso Araújo é mestre e doutor em Direito Tributário