A recente decisão do TST e o vínculo de emprego entre motoristas e aplicativos

Por Francisco de Assis Barbosa Junior

Com a pandemia da Covid-19, o “futuro chegou mais cedo”!

A lógica dessa frase de advento precipitado do futuro em decorrência da Covid-19 parece verdadeira com relação ao universo de grande parte dos campos das relações humanas, contudo, ao menos com relação a um deles, a mesma não é plenamente verdadeira: o das relações trabalhistas.

Certamente o ora alegado não se consubstancia numa negativa quanto aos impactos da pandemia sobre o mundo do trabalho, os quais existem e são maiúsculos. Na realidade, o que ora se defende é que o “futuro” já havia chegado para as relações laborais bem antes do evento pandêmico, notadamente com a eclosão da gig economy.

No universo trabalhista desse tronco econômico, os obreiros têm um contrato de atividade por tempo certo e supostamente sem vínculo empregatício, sendo contratados para desenvolverem tarefas específicas. Nele uma empresa faz a intermediação eletrônica entre o trabalhador e o consumidor final.

Inserido nesta nova configuração laboral encontra-se o denominado trabalho on demand por meio de aplicativos, em que a realização de tarefas tradicionais (como a de transporte e entregas) é requerida via algum deles. Esse é o caso da empresa Uber, a qual disponibiliza eletronicamente o serviço de motoristas aos clientes que o utilizam para realizar viagens.

Se relações trabalhistas nesses moldes eram quase impensáveis apenas 15 anos atrás, há quase 80, época da formulação da CLT, lembravam bem mais algo próximo da ficção científica que da realidade, naturalmente não tendo sido abordadas no texto original da norma. Nessa linha, deve-se interpretar o texto celetista à luz não do prisma das relações laborais do tempo em que seu texto foi concebido, mas, sim, evoluir o processo interpretativo para analisá-lo sob os novos ângulos das novas relações de trabalho.

No último dia 9, a 4ª Turma do TST rechaçou a presença de vínculo de emprego entre um motorista e o aplicativo Uber, seguindo caminho semelhante ao da 5ª Turma do mesmo tribunal. Externando o máximo respeito ao entendimento esposado pela corte em ambas as decisões, dele discordamos, especialmente quanto ao fato de se considerar a CLT forjada exclusivamente para as relações de emprego típicas da segunda revolução industrial, como adiante exporemos.

Decisões das turmas do TST
Como já tivemos a oportunidade de analisar aqui mesmo na ConJur, a 5ª Turma do TST, em acórdão prolatado no RR-1000123-89.2017.5.02.0038, entendeu pela inexistência de relação de emprego entre os motoristas e o aplicativo de transportes Uber. A decisão teve como lastro principal a alegada inexistência de onerosidade e subordinação na relação.

No acórdão foi adotada a tese de que o alto percentual sobre os valores pagos pelas viagens recebido pelos motoristas seria impeditivo da onerosidade típica do vínculo empregatício, mais se aproximando o caso de um labor autônomo. Por outro lado, o nível de flexibilidade do motorista quanto à determinação de sua rotina, da escolha do número de clientes a serem atendidos, do itinerário e da jornada de labor serviram de base para se entender presente a autodeterminação obreira incompatível com a relação de emprego, pois tais fatos afastariam a subordinação jurídica.

Por seu turno, a 4ª Turma do TST, em acórdão da lavra do ministro Alexandre Luiz Ramos, prolatado no AIRR – 10575-88.2019.5.03.0003 no último dia 9, também se posicionou contra a existência de vínculo de emprego entre um motorista e o aplicativo Uber.

No acórdão, em face do teor da Súmula nº 126 do TST, foi mantido o entendimento consagrado na decisão recorrida quanto ao reconhecimento da ampla autonomia na prestação de serviços, ao fato de ser do trabalhador o ônus da atividade econômica e a ausência de subordinação do obreiro com a reclamada.

Há no aresto a argumentação de que o vínculo de emprego definido pela CLT tem como padrão a relação clássica de trabalho industrial, comercial e de serviços. Nessa linha, as novas formas de trabalho deveriam ser reguladas por leis próprias e, enquanto o legislador não as editar, não pode o julgador aplicar indiscriminadamente o padrão da relação de emprego.

No caso, entendeu a 4ª Turma haver mais aproximação do labor dos motoristas de aplicativos com o do transportador autônomo, regulamentado pela Lei nº 11.442/2007, já que o usuário-motorista pode decidir livremente quando e se disponibilizará seu serviço de transporte para os usuários-clientes sem qualquer exigência de trabalho mínimo, de número mínimo de viagens por período e de faturamento mínimo, isso tudo sem qualquer fiscalização ou punição empresarial quanto às suas decisões.

Do vínculo de emprego
Apreciando o acórdão da 5ª Turma, constatamos ter ela se baseado no alto percentual do valor pago pelos usuários do aplicativo destinado aos motoristas (entre 75% e 80%). Este seria até mesmo superior ao que a corte vem admitindo como bastante para a caracterização da relação de parceria entre os envolvidos.

Sem embargo do percentual efetivamente acima da média, entendemos não ser este fato obstativo per si para o reconhecimento de um contrato de emprego. As razões para a escolha do mesmo podem ser creditadas a uma opção empresarial, a qual, independentemente de sua origem, em face de sua unilateralidade, não pode atingir negativamente o obreiro a ponto de servir de barreira para afastar um pacto empregatício.

Noutra linha argumentativa, e analisando a escolha pelo elevado percentual, temos ser ele justificável pelo caráter inovador da relação de trabalho em tela, firmada sob os novos parâmetros da indústria 4.0, e, também, pelo fato do trabalhador arcar com todas as despesas do veículo utilizado (aquisição ou aluguel, manutenção, combustível necessário às viagens etc.), gastos que demandam maior retribuição proporcional pelo labor para serem enfrentados.

Acerca dos precedentes utilizados no acórdão, concernem eles ao segmento de salões de beleza, o qual abarca, na maioria absoluta dos casos, poucos trabalhadores por empresa, fato que talvez os inviabilizasse efetivamente caso fossem os profissionais empregados e recebessem comissões acima de 60% pelo labor desenvolvido. Não obstante, não é esse o caso dos motoristas de aplicativos, que totalizam centenas de milhares no Brasil e ensejam considerável margem de lucro para as empresas, mesmo com percepção por elas de percentual igual ou inferior a um quarto do total pago pelos consumidores.

Quanto à subordinação jurídica, na maneira descrita, ambas as turmas decidiram pela sua inexistência. Para elas haveria aqui um grau de liberdade incompatível com a mesma, pois pode o trabalhador escolher ficar offline, quais viagens e quantos clientes vai atender, determinando sua rotina. Por seu turno, a empresa não exige uma quantidade mínima de faturamento, trabalho ou de viagens por período, também não exercendo fiscalização ou punição por qualquer decisão do trabalhador no particular.

Novamente aqui ressaltando o respeito devido às duas decisões, delas discordamos.

Não há liberdade efetiva quanto à quantidade de clientes a serem atendidos ou a qual percursos de viagens seguir. Caso haja número de recusas de viagens e clientes que entenda o aplicativo demasiado, o motorista corre o risco de ter a quantidade de ofertas dessas viagens para ele diminuída, e, em último caso, de ser descadastrado, eufemismo claro para demissão. Assim sendo, não há falar aqui em autodeterminação de rotina.

Em face desta possibilidade de “descadastramento”, ao contrário do decidido, há aqui fiscalização e possibilidade de punição ao trabalhador. Destaque-se haver também na empresa um sistema de análise da qualidade dos serviços prestados pelos obreiros, existindo a possibilidade de também haver o fim da relação como punição empresarial por eventual resultado insatisfatório.

Igualmente merece ser ressaltado o fato de ser a empresa quem escolhe os clientes, as rotas e o preço das viagens, estando ausentes qualquer grau de autonomia ou interferência dos trabalhadores.

Noutra linha argumentativa, não se pode restringir a aplicação da CLT apenas às relações presentes quando da segunda revolução industrial, a qual estava em pleno desenvolvimento no ano de sua entrada em vigor (1943). Se assim se procedesse, não poderia ser considerado dela a normatização de novos vínculos subordinados como o teletrabalho, existente apenas a partir da terceira revolução, o qual é abarcado pelo seu artigo 6º celetista, assim como pela Lei nº 13.467/2017.

Se a CLT é aplicável também para os vínculos de emprego da terceira, por que não o seria para os da quarta revolução industrial como o labor por aplicativos? A interpretação de uma norma não pode ficar presa à vontade de quem a formatou, aos interesses legislativos da época de sua origem, sendo a interpretação histórica apenas um dos meios para dela se extrair a essência.

Uma vez em vigor, a lei ganha vida independente da de seu criador, passando a integrar o sistema jurídico nacional e a ser objeto da hermenêutica, dela sendo extraídos sentidos até mesmo implícitos, desde que condizentes com o sentido do justo pregado pela jurisprudência de conceitos reinante no Estado democrático de Direito.

A evolução em estudo, inclusive, foi acatada pela 2ª Turma do TST em 13 de outubro de 2004 quando da análise da situação de um teletrabalhador (TST-AIRR-812235-02.2001.5.01.5555), sendo apenas ressaltada a necessidade da existência efetiva da subordinação jurídica no caso concreto.

Quanto aos elementos de configuração da relação de emprego, constantes do artigo 3º consolidado, cabe registrar que vêm sendo tratados sob nova ótica a partir das recentes medidas implantadas em prol da tão discutida flexibilização das normas trabalhistas. Nessa linha, a hierarquia e fiscalização rígidas centralizadas na pessoa do empregador são mitigadas no que tange a novas relações surgidas, dentre as quais o chamado “teletrabalho”. No entanto, o requisito da subordinação jurídica que distingue a relação de emprego das demais, continua a ser fator essencial ao preenchimento dos requisitos traçados no dispositivo legal a que se alude.

Já a flexibilidade de horários e possibilidade de desconexão também aventadas nos acórdãos em análise igualmente não levam a relação para o caráter autônomo, antes sendo referência da presença de uma subordinação estrutural, em que o obreiro se insere na dinâmica do tomador de seus serviços, não recebendo ordens diretas do patrão. Nela é fundamental que dentro da atividade desse tomador esteja estruturalmente vinculado o obreiro.

A citada teoria, inclusive, encontra respaldo no TST, como destaca Zwicker, tendo sido adotada pela sua 6ª Turma.

Recentemente, tendo em vista as novas formas de organização do trabalho, parte da doutrina e da jurisprudência vem adotando a chamada teoria da subordinação estrutural, principalmente em questões relacionadas à terceirização e ao trabalho à distância (como o teletrabalho). Nesse enfoque, reconhece-se a subordinação, inerente à relação de emprego, quando o empregado desempenha atividades que se encontram integradas à estrutura e à dinâmica organizacional da empresa, ao seu processo produtivo ou às suas atividades essenciais, não mais se exigindo a subordinação jurídica clássica, em que se verificavam ordens diretamente emanadas do empregador.

Correta a 5ª Turma do TST quando, no acórdão estudado, destacou ser dever do Judiciário trabalhista a preservação dos princípios norteadores da relação de emprego, apenas reconhecendo esta quando existentes seus elementos, não devendo ser inviabilizadas novas formas de labor. Porém, ao seguir este objetivo, não se podem olvidar as inovações presentes no universo da revolução 4.0, sendo necessário evoluir e flexibilizar a interpretação de conceitos clássicos dos elementos descritos no artigo 3º da CLT a fim de descortinar a real natureza jurídica inerente às novas relações de trabalho.

Conclusões
A opção pela criação de uma norma específica para os trabalhadores via aplicativos não pode ser descartada, já tendo sido por nós inclusive analisada noutro artigo publicado pela ConJur. Contudo, esse advento se consubstanciaria tão somente numa opção política caso prevaleça definitivamente o entendimento de que não são eles empregados, na maneira já feita pelas 4ª e 5ª Turmas do TST.

Defendemos entendimento contrário ao dessas turmas, pois, para o correto enquadramento jurídico dos novos vínculos trabalhistas, mister se faz interpretar os elementos constitutivos do contrato de emprego sob o prisma da atualidade, não mais tendo em vista apenas os conceitos clássicos do que sejam pessoalidade, onerosidade, não eventualidade e subordinação jurídica. Em algum grau, esses elementos sofreram impactos da tecnologia e das telecomunicações os quais forjam hoje uma barreira intransponível para a sua exegese exclusiva sob dogmas construídos ainda na primeira metade do século 20.

As relações entre aplicativos e motoristas estão inseridas no contexto do novo mundo do trabalho, havendo aqui há uma relação triangular, em que as empresas fazem a intermediação entre os trabalhadores e os clientes, havendo compartilhamento dos valores pagos por estes entre aqueles. As características narradas levam à conclusão pela presença de subordinação estrutural no particular, pois se insere o trabalhador na dinâmica do tomador de seus serviços, não recebendo ordens diretas do patrão, estando estruturalmente vinculado o obreiro na atividade do tomador de serviços.

Referências bibliográficas
BARBOSA JUNIOR, Francisco de Assis. Gig Economy e Contrato de Emprego. São Paulo: LTr, 2019.

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ZWICKER, Igor de Oliveira. Súmulas, Orientações Jurisprudenciais e Precedentes Normativos do TST. São Paulo: LTr, 2015, p. 229.