A ‘zona (não tão) franca’ da carteira de trabalho verde e amarela

GUILHERME GRILLO

 

A carteira verde e amarela possui um significado jurídico sistêmico profundo. Ela estabelece uma espécie de “zona franca” (nem tão franca assim), um estado de exceção juslaboral (nem tão excepcional), na qual os trabalhadores subordinados hipossuficientes serão regidos fundamentalmente por um contrato de natureza civil.

Isto não é propriamente flexibilizar o Direito do Trabalho. A flexibilização é um processo “intra-muros”, algo que foi feito em 2017, criando uma série de reduções normativas no campo juslaboral, ampliando autonomia coletiva para negociar condições expressamente elencadas. A atual reforma é antes a não aplicação do Direito do Trabalho enquanto área

Tem-se argumentado que a medida fere a Constituição, uma vez que a sua aplicação genérica, apenas limitada ao fator etário, violaria o princípio da igualdade em relação aos demais trabalhadores. Seria algo distinto do conceito de categoria, nas quais se criam regras diferenciadas, geralmente mais protetivas, em função da natureza e especialidades daquele grupo de pessoas, como mulheres, menores, pessoas com deficiência etc.

Mas há outras questões em causa. Sem fugir do conceito de igualdade, mas aqui em uma outra dimensão, está na essência dos trabalhadores atingidos pela hipótese normativa a sua manifesta hipossuficiência. Aliás, não pode haver exemplo mais pedagógico de ausência de capacidade negocial que o jovem em busca do primeiro emprego, suscitando-se um manifesto desequilíbrio de origem, algo inaudito até mesmo para os contratos em que vigora a autonomia privada.

Os defensores da sua juridicidade irão imediatamente situar a carteira verde e amarela em um contexto específico, de cariz excepcional, para conter o desemprego dos mais jovens e dinamizar a contratação. O argumento é também frágil. Embora exista a inegável necessidade de garantir acesso e primeiro emprego aos mais jovens, isso pode ser feito dentro do âmbito do Direito do Trabalho, como a possibilidade de contratação a termo, ampliação do período de experiência, etc., ou outros estímulos que sopesem os interesses de proteção e flexibilização. Ou seja, há outras vias, razoáveis e proporcionais, para atingir-se o fim almejado. A validade do argumento temporal é igualmente duvidosa, pois nem governo e muito menos empresas pensam em tão exíguo prazo. Além disso, a economia brasileira já dá indícios de recuperação da última crise econômica e não se está a sofrer uma intervenção monetária internacional que exija tão severas restrições aos direitos sociais.

Há, portanto, algo além desse elementos justificadores. E não é difícil depreender que a carteira verde e amarela é tão somente a criação indisfarçada, pela sua própria designação, de um modelo alternativo à legislação laboral. Tal modelo, contudo, é vedado pela Constituição brasileira, não apenas por violar a isonomia, mas fundamentalmente por ferir um dos objetivos da República, que acolhe o “valor social do trabalho” como princípio conformador, como um limite ao poder econômico. A normatividade laboral é um imperativo da nossa ordem econômica, que não admite zonas de exclusão absoluta.

Além disso, essa modalidade de contratação, justificada como medida excepcional, deve ser cotejada com a última reforma trabalhista, no âmbito da qual os pilares de sustentação do modelo jurídico das relações laborais — sindicatos, Poder Judiciário e inspeção ou fiscalização do trabalho — saíram significativamente fragilizados. Não há como dissociar esses movimentos enquanto etapas de uma estratégica mudança de regime das situações jurídicas laborais. No fundo, assiste-se a um afastamento do modelo de legislação laboral tradicional, que vigorou nos últimos cem anos e é preconizado pela Organização Internacional do Trabalho, do qual o Brasil é signatário. Em seu lugar, está em causa uma cada vez maior aproximação ao modelo norte-americano de liberdade de contratação, porém com uma grande diferença: o associativismo e a liberdade sindical nos Estados Unidos garantem boa margem de diálogo social e a negociação de direitos trabalhistas.

Assim, está na pauta do STF não apenas examinar a constitucionalidade da medida, como também um aspecto fundamental de uma estratégia mais ampla de governação anunciada das relações laborais, que se funda essencialmente na substituição do modelo de regulamentação. Essa substituição, portanto, não tem acolhimento na vontade do legislador constituinte e nem mesmo no desenvolvimento da sua legislação posterior, que incorpora diversos tratados e instrumentos normativos internacionais de proteção juslaboral.

GUILHERME GRILLO  éProfessor e pesquisador do Centro de Investigação de Direito Privado da Universidade de Lisboa. Doutorando em Direito do Trabalho na Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa; advogado.

FONTE: site JOTA