A crise da Covid-19, o dano existencial e o teletrabalho

Por Francisco de Assis Barbosa Junior

Introdução
“O teletrabalho chegou para ficar!”. Ao menos no universo jurídico, essa frase ganhou um lugar de destaque entre as mais pronunciadas desde o início dos terríveis tempos de pandemia que atravessamos. A projeção da frase parte de um amplo lastro legal e fático, formado por leis emergenciais em que é o teletrabalho abordado (a exemplo da MP nº 927/2020) e por sua adoção maciça pelas empresas e órgãos públicos.

Naturalmente, a citada medida provisória incentivou a grande adesão ventilada, pois criou e flexibilizou algumas das regras concernentes àquela forma de trabalho, também possibilitando sua utilização por aprendizes e estagiários. Contudo, sua influência não foi decisiva no particular, pois o teletrabalho de fato apresenta-se como uma saída eficaz e prática contra as aglomerações ocorridas durante o funcionamento das empresas. A permanência do obreiro em casa, laborando via meios telemáticos, deixa-o isolado, seguindo esta que talvez seja a maior das orientações preventivas contra a contaminação pelo coronavírus da OMS.

Não obstante, e sem embargo das vantagens do teletrabalho em tempos de pandemia, nele também habitam desvantagens, entre as quais destacamos a falta de desconexão dos obreiros, nascida da inexistência física de limites entre o trabalho e a vida privada, da facilidade de acesso aos instrumentos laborais a qualquer momento (computadores, tablets etc.), da possibilidade de extensão de jornada sem conhecimento ou até com o incentivo patronal e da demanda inédita por resultados hoje vivenciada no mundo corporativo.

A ausência de desconexão em tela, além do adoecimento mental e físico do empregado, pode igualmente ensejar um dano existencial, com máculas de caráter extrapatrimonial ao trabalhador e patrimonial ao seu empregador.

Dano existencial
Como bem explicado por Sá Nogueira (2021), o dano existencial possui origem doutrinária italiana, contudo, mesmo antes da Lei nº 13.467/2017 já vinha ele sendo adotado de forma cada vez mais reiterada pela doutrina e jurisprudência brasileiras. O Tribunal Superior do Trabalho, inclusive, já havia conceituado o instituto e sua aplicação nas relações de trabalho:

“O dano existencial é espécie de dano imaterial. No caso das relações de trabalho, o dano existencial ocorre quando o trabalhador sofre dano/limitações em relação à sua vida fora do ambiente de trabalho em razão de condutas ilícitas praticadas pelo empregador, impossibilitando-o de estabelecer a prática de um conjunto de atividades culturais, sociais, recreativas, esportivas, afetivas, familiares, etc., ou de desenvolver seus projetos de vida nos âmbitos profissional, social e pessoal. Não é qualquer conduta isolada e de curta duração, por parte do empregador, que pode ser considerada como dano existencial. Para isso, a conduta deve perdurar no tempo, sendo capaz de alterar o objetivo de vida do trabalhador, trazendo-lhe um prejuízo no âmbito de suas relações sociais” (TST. Acórdão no Recurso de Revista. TST-RR-1443-94.2012.5.15.0010, Relatora: Maria de Assis Calsing, 4ª Turma, Data de Publicação: 17/4/2015).

Consubstanciando-se o dano existencial numa espécie do gênero “dano extrapatrimonial”, ele serve como instrumento de tutela da dignidade da pessoa humana ao combater a supressão do direito de ter e executar projetos da vida pessoal.

Neste momento merece destaque o fato de o texto constitucional ter estabelecido uma premissa maior, qual seja, a proteção da dignidade da pessoa humana, e, também, especificado alguns direitos fundamentais e o dever de indenizá-los quando maculados. Como exemplos de danos indenizáveis podemos citar o artigo 5º, V, da Carta Magna, que dispõe ser “assegurado o direito de resposta, proporcional ao agravo, além da indenização por dano material, moral ou à imagem”, assim como o inciso X do mesmo artigo, que prevê serem “invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação” (Brasil, 1988).

Embora tenha seguido esse caminho, naturalmente o texto constitucional não se preocupou em enumerar exaustivamente os danos extrapatrimoniais indenizáveis, até porque, na forma ressaltada por Silva (1997, p. 227), “à medida que o conceito de pessoa se transforma, novos danos são a ele acrescidos, em decorrência mesma de uma visão mais integral deste conceito”.

Esse flanco criativo foi seguido pelo legislador da reforma trabalhista (Lei nº 13.467/2017), o qual colocou na CLT o artigo 223-B. Transcrevo: “Causa dano de natureza extrapatrimonial a ação ou omissão que ofenda a esfera moral ou existencial da pessoa física ou jurídica, as quais são as titulares exclusivas do direito à reparação” (Brasil, 2017 — grifo do autor).

Nessa linha, dúvidas não há: há hoje previsão legal expressa do dano existencial.

Na forma aventada pelo TST, não é qualquer lesão que poderá gerar o dano existencial. Esse dano deve ser de tamanha magnitude que comprometa de forma grave e irretratável o projeto de vida ou a vida de relação do indivíduo, sendo essa hiperexploração acompanhada, ou não, de prestação pecuniária.

Dito isso, podemos definir o dano existencial como uma mácula a algum direito fundamental da pessoa que enseje uma alteração prejudicial no seu modo de ser ou nas atividades por ele executadas, sendo desnecessário que desta alteração surja repercussão econômica negativa. Ele fere direitos fundamentais, impossibilitando o indivíduo de manter relações, sejam culturais, sociais, espirituais, recreativas, esportivas e de descanso, ou frustrando projetos de vida pessoal, profissional ou social.

O dano em estudo possui dois elementos específicos, o projeto de vida e a vida de relação, que são maculados quando de sua ocorrência.

Por projeto de vida pode-se entender as metas e objetivos que importam na autorrealização do indivíduo. É o que a pessoa pensou para a sua vida. O dano a esse projeto impede ou dificulta o livre desenvolvimento da personalidade, seja atacando a projeção da carreira, as escolhas de vida, ou mesmo as características que individualizam cada pessoa. Significa ele uma lesão a liberdade de escolha do indivíduo.

Já a vida de relação compreende os relacionamentos de cunho familiar, profissional ou afetivo. Os contatos interpessoais possibilitam ao indivíduo o compartilhamento de ideais e experiências, sendo imprescindíveis num mundo onde o homem quase que só existe na companhia dos outros. O homem, como ser social, necessita de convivência em sociedade, de uma vida de relação.

O dano existencial no teletrabalho
Nas relações laborais configura-se dano existencial, por exemplo, quando há imposição de cargas excessivas de trabalho ao empregado, limitando ou impossibilitando que este desenvolva seus projetos ou usufrua de suas atividades cotidianas, seja na esfera pessoal, social, familiar ou profissional.

Isto colocado, e na maneira por nós abordada no livro “Contrato de Teletrabalho” (2019), chama a atenção o fato da adoção do teletrabalho estar ameaçando o gozo do direito formal aos descansos. Muitas vezes não é possível ao obreiro se desconectar do trabalho mesmo em períodos de folgas legalmente previstos, até pelo fato de frequentemente ser avaliado pelos seus resultados.

Hoje começam a aparecer os fantasmas da ubiquidade, se pretendendo o ser humano disponível para trabalhar em todo lugar e a toda hora, pois, para mourejar, basta o trabalhador acessar um computador dotado de ligação de acesso remoto e continuar seu labor durante o período destinado, em tese, ao seu repouso. Vivenciamos uma tendência cada vez maior de se incluir o trabalhador na vida da empresa, estando aquele de maneira crescente mais disponível para esta, embora fora do horário de labor.

Esse labor quase ininterrupto ataca frontalmente o direito à desconexão, o qual ultrapassa meros conceitos clássicos de limitação de jornada relacionados ao cronômetro, indo além dessa parte, abarcando também o de se desligar, desprender, soltar, afastar a mente do trabalhador de seu trabalho, desconectando-a do mesmo.

Dentro dessa realidade de fim do descanso, há um claro dano à convivência do trabalhador, sofrendo este “limitações em relação à sua vida fora do ambiente de trabalho em razão de condutas ilícitas praticadas pelo empregador, impossibilitando-o de estabelecer a prática de um conjunto de atividades culturais, sociais, recreativas, esportivas, afetivas, familiares”, nas palavras do TST. Possibilitam-se, aqui, prejuízos às metas e objetivos que importam na autorrealização do indivíduo, frustrando seus projetos de vida, seja pessoal, profissional ou social.

Destarte, há aqui um obstáculo ao projeto de vida e à vida de relação do trabalhador. Há um dano existencial.

A Covid-19 e a busca por uma regulamentação efetiva do teletrabalho
Sempre ressaltamos a demanda por uma legislação mais ampla do teletrabalho. Tal qual as novas atividades surgidas com a Revolução 4.0 (a exemplo da dos motoristas de aplicativo, como, inclusive, por nós abordado noutros artigos publicados pela ConJur), aquela modalidade de labor carece de uma regulamentação clara, específica e abrangente, a qual traga segurança jurídica às empresas e empregados, assim como maior proteção para estes.

O advento da pandemia da Covid-19 expôs de forma clara a carência mencionada, ao ensejar a adoção maciça do teletrabalho sem que este tivesse no ordenamento jurídico o regramento devido, expondo uma massa muito maior de trabalhadores a sofrer danos existenciais.

Dessa arte, os reflexos da pandemia acabam ganhando aqui um novo capítulo, o da mácula ao patrimônio imaterial de grande parte dos obreiros, com consequências nefastas não só para estes, mas, também, para as empresas, as quais correm o risco de sofrer condenações vultosas no particular.

Os efeitos dessa conexão entre a pandemia, a adoção maiúscula do teletrabalho e o dano existencial só podem ser combatidos através de amplos debates sobre como efetivamente desconectar o trabalhador após sua jornada regular e, após, com atitudes legislativas concretas deles decorrentes. A pena por assim não agir vai ser ter de lidarmos por muito tempo com mais esse efeito nefasto da Covid-19.

 

Referências bibliográficas
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*Francisco de Assis Barbosa Junior é juiz do Trabalho do TRT da 13ª Região