A ADI 5766 e os mitos que envolvem a Justiça do Trabalho

Por Luiz Antonio Colussi

Julgamento de Ação Direta de Inconstitucionalidade no STF pode impactar amplo e livre acesso à Justiça

A Justiça do Trabalho está, possivelmente, em um dos momentos mais importantes da sua história, em razão do julgamento, no Supremo Tribunal Federal (STF), da ADI 5766, Ação Direta de Inconstitucionalidade que trata da garantia de seu amplo e livre acesso – um dos pilares de sua existência e de sua importância como serviço que traz a paz social.

Entretanto, o Brasil necessita que quaisquer novas alterações legislativas estejam fundamentadas em fatos exatos, e que julgamentos acerca de uma matéria estejam ancorados em paradigmas corretos. Por isso, é importante desmistificar e dar bases reais à discussão sobre o amplo acesso à prestação jurisdicional, em especial para pessoas mais pobres.

É preciso recordar que, sem qualquer discussão dos operadores do direito do trabalho, a reforma trabalhista alterou, em novembro de 2017, mais de cem artigos da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), legislação fundamental no julgamento dos processos que tramitam na Justiça do Trabalho. Não foram ouvidos magistrados, procuradores e advogados do trabalho. Aqueles que estão, em seu dia a dia, sentados nas salas de audiência e em frente aos balcões das Varas do Trabalho de todo o país não puderam expressar a sua posição, o seu entendimento. Da mesma forma, não foram ouvidas as associações e entidades de classe. São eles, assim como os empregadores e trabalhadores, os destinatários da norma, tendo o conhecimento acerca do que se faz necessário mudar, do que é importante manter, em face de sua essência, e do que precisa de mais debate.

A partir da entrada em vigor da Lei nº 13.467/2017, iniciaram-se os debates acerca de sua aplicação e, dentre eles, temos um dos mais importantes: o livre e amplo acesso à Justiça, objeto da ADI 5766. Ora, a Justiça do Trabalho tem como fundamento essencial o livre e amplo acesso à Justiça, que é traduzido, desde a sua fase inicial, pela redução a termo da reclamatória trabalhista da parte que detém o jus postulandi – aquele que pode reclamar sem advogado – e pela prevalência da oralidade no processo do trabalho.

É sabido que desde 1943, quando editada a CLT, muitas alterações ocorreram. Contudo, o livre e amplo acesso à Justiça, como centro nevrálgico da Justiça do Trabalho, transmudou-se e assumiu novos formatos, mas sempre garantido que o cidadão tivesse acesso fácil e direto à Justiça Especializada. E um dos pontos primordiais é, sem dúvida nenhuma, que a questão financeira não pudesse impedi-lo. É algo crucial: como permitir que alguém possa acessar de forma ampla e livre a Justiça do Trabalho se existem barreiras financeiras como o pagamento de custas e honorários, ainda que ao final?

Não se nega a necessidade da alteração legislativa trabalhista. Contudo, fundamentos da Justiça do Trabalho, como o amplo e livre acesso à justiça, devem permanecer, a fim de que não se perca a sua essência, a sua importância e a sua real finalidade.

Nessa medida, é inegável a inconstitucionalidade da reforma trabalhista, ao alterar dispositivos legais que dizem respeito ao acesso à Justiça, posto que a Constituição Federal traz a sua garantia, no Art. 5º, inciso XXXV.

Muitos cogitam a necessidade da alteração na legislação trabalhista em razão da alegação de frequente má-fé por parte dos demandantes na Justiça do Trabalho, o que acaba por fundamentar a constitucionalidade da reforma trabalhista. Sempre existiram mecanismos capazes de coibir aquele que não usa do processo para os meios legais a que se destina, que já eram utilizados pelos magistrados e magistradas do trabalho – quem têm o conhecimento e a sensibilidade necessária para a sua aplicação – mesmo antes da reforma trabalhista.

Também existem dispositivos legais que são próprios da legislação trabalhista, como o arquivamento, quando é ausente o reclamante, na primeira audiência, o que não é utilizado necessariamente por aquele que tem má-fé, tal como se tem propalado, mas é o meio de permitir o ajuizamento de nova reclamatória trabalhista, quando o reclamante, por exemplo, tem novo trabalho e não consegue comparecer à audiência, por motivos diversos.

Outro ponto relevante é que a perícia jamais é utilizada como meio de protelar o processo, o que nunca é do interesse da parte reclamante. Note-se que a perícia, no processo do trabalho, tem uma função específica que é a de constatar se as atividades são insalubres ou periculosas, ou se há ou não doença profissional. Todos esses fatos não são de conhecimento da parte autora do processo do trabalho, em regra, antes do ajuizamento da ação. Ela acaba tendo ciência somente depois da perícia.

Ainda, como fundamento para a necessidade da alteração da legislação trabalhista e de sua constitucionalidade, tem-se utilizado o argumento de que o Brasil tem 98% dos casos trabalhistas de todo o mundo, enquanto que detém 2% da população mundial, o que representa um mito, conforme afirma o juiz do trabalho do Tribunal Regional do Trabalho da 1ª Região João Renda Leal Fernandes em sua obra “O Mito EUA – Um país sem direitos trabalhistas?”.

A respeito disso, o citado autor ensina que tal argumentação é uma afirmação desprovida de maior respaldo empírico-científico. Tendo origem na entrevista concedida por um empresário, a ideia de que o Brasil seria o país recordista de ações trabalhistas transformou-se – através de um verdadeiro telefone sem fio – em um mito de que o sistema brasileiro seria sozinho responsável por produzir 98% das ações trabalhistas do planeta. Essas informações foram divulgadas e reproduzidas em palestra de Ministro do STF, em país estrangeiro e no principal parecer que o PL da Reforma Trabalhista recebeu no Senado.

Esse mito tem de ser, rapidamente, desconstituído, sob pena de termos matérias sendo julgadas e alterações legislativas ainda sendo promovidas, com base em dados e fundamentos que não representam a realidade, ou seja, os fatos reais, a vida real e, portanto, não podem servir de paradigma para o desenvolvimento pleno de uma sociedade livre, justa, soberana e igualitária.

Ainda, não é verdadeira a informação de que o Brasil teria tido 4 milhões de ações trabalhistas por ano, de 2015 a 2017, uma vez que os números computam, como ações novas, os processos que tramitam nos Tribunais Regionais do Trabalho (TRTs) e no Tribunal Superior do Trabalho (TST) que, em sua maioria, se referem a recursos das ações trabalhistas que tramitaram nas Varas do Trabalho.

Segundo dados obtidos na Coordenadoria de Estatística e Pesquisa do TST, em 2015, as Varas do Trabalho receberam 2.615.299 casos novos, os TRTs e o TST receberam 667.539 e 208.249 processos, respectivamente (total de 3.491.087). No ano de 2016, foram 2.723.074 casos novos recebidos pelas Varas do Trabalho, sendo 795.934 processos recebidos pelos TRTs e 181.633 do TST (total de 3.700.642).

Já em 2017, as Varas do Trabalho receberam 2.630.842 casos novos, os TRTs, 837.331 processos, e o TST, 206.869 (total de 3.675.042). No ano de 2018, o número total de processos que tramitou na Justiça do Trabalho, nas Varas do Trabalho, nos TRTs e no TST foi de 2.900.573, havendo decréscimo de 700 mil em relação ao ano anterior, o que, sem dúvida, é reflexo da alteração legislativa produzida pela reforma trabalhista e da restrição de acesso à Justiça.

O Poder Judiciário é um dos três Poderes da República Federativa do Brasil. Magistrados e magistrados do trabalho são órgãos do Poder Judiciário e, portanto, têm como dever a entrega da prestação jurisdicional, não devendo, jamais, serem analisados sob o prisma da arrecadação que é produzida em decorrência da execução de seu mister constitucional.

A Justiça do Trabalho, por fim, demonstrou, durante esse período de pandemia, o quanto é capaz de assegurar o livre e amplo acesso à Justiça, bem como a duração razoável do processo. Por meio de trabalho árduo e duro de magistrados e de magistradas do trabalho, foi capaz de reinventar-se, realizar audiências e promover a entrega da prestação jurisdicional.

Dessa maneira, precisamos, sim, de alterações legislativas, mas que tenham por fundamentos fatos reais, e de julgamentos que apresentem paradigmas corretos. Precisamos, mais ainda, de uma Justiça do Trabalho que julgue todas as demandas sociais existentes e que não haja entraves de ordem financeira para que o trabalhador possa levar ao Judiciário o que entende que é seu direito.

Somente assim teremos uma sociedade apta ao tão almejado crescimento econômico. E o tal novo e propalado direito econômico que deve seguir o social e não o inverso. Não se olvide que as normas atacadas na ADI 5766 violam os princípios constitucionais da isonomia (art. 5º, caput), da ampla defesa (art. 5º, LV), e a ampla assistência aos necessitados (art. 5º, LXXIV). Clamamos por justiça ampla, irrestrita e livre!

Lui Antonio Colussi é Presidente da Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho. Juiz do Trabalho no Tribunal Regional do Trabalho da 4ª Região (RS), sendo titular da 9ª Vara do Trabalho de Porto Alegre. Mestre em Direito pelo Mestrado Interinstitucional UPF/UNISINOS.