Por Luciana Paula Conforti*
O bárbaro assassinato do congolês Moïse Mugenyi Kabagambe, no mês de janeiro de 2022, em um quiosque da Barra da Tijuca, no Rio de Janeiro, apenas por exigir o pagamento de suas diárias de trabalho, no valor de R$ 200, nos faz refletir não só sobre o racismo estrutural nas relações de trabalho, como também sobre a política de emprego para nacionais e estrangeiros no Brasil. Questões de racismo e discriminação emergem no contexto laboral, causando desigualdades de oportunidades.
No encontro realizado em outubro de 2021, em Roma, os líderes do G20 firmaram o compromisso de adotar abordagens políticas centradas nas pessoas em seus planos de recuperação da pandemia da Covid-19. A Declaração do G20 destacou o compromisso das (dos) líderes em garantir condições de trabalho seguras e saudáveis, trabalho decente para todas as pessoas, justiça e diálogo social, por meio do fortalecimento dos sistemas de proteção social, a fim de reduzir as desigualdades, erradicar a pobreza, apoiar as transições e reintegração de trabalhadoras e trabalhadores nos mercados de trabalho e promover o crescimento inclusivo e sustentável, de acordo com os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) da Agenda 2030 da ONU.
Com relação à Agenda 2030 da ONU, importante destacar o ODS 8 sobre trabalho decente e desenvolvimento econômico, já que a desigualdade de renda e de oportunidades prejudica o crescimento econômico e o alcance do desenvolvimento sustentável, criando ciclo vicioso que impede o aumento das perspectivas de mudança desse quadro, com a melhoria do estudo, da qualificação e, consequentemente, alcance de empregos de qualidade. Levantamento da Austin Rating aponta que a taxa de desemprego no Brasil é o dobro da média mundial e a pior entre os membros do G20, representando a 4ª economia com os piores índices entre mais de 40 países.
Apesar de a taxa de desemprego ter apresentado leve queda no trimestre encerrado em agosto de 2021, ainda atinge 13,7 milhões de trabalhadores, segundo pesquisa divulgada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Houve a recuperação de empregos formais até julho de 2021, mas, mesmo assim, há déficit de 5 milhões de empregos, em comparação com o período pré-pandemia. Nesse quadro, também houve o aumento da informalidade, passando de 39,8% para 40,8%, o que leva a violações de direitos sociais constitucionalmente garantidos.
O Brasil logrou quase 400 anos de escravidão e a sociedade brasileira tem dívida histórica e compromisso inadiável de combate ao racismo, sendo indispensável a análise de dados baseada em raça/cor, tendo em vista que a população negra (pretos e pardos) possui maiores dificuldades de inclusão socioprodutiva, o que é evidenciado pelos maiores índices de pobreza, desemprego e desalento em comparação com a população branca. Como aponta o Observatório da Diversidade e da Igualdade de Oportunidades no Trabalho, ferramenta digital de pesquisa desenvolvida pelo Ministério Público do Trabalho (MPT) e pela Organização Internacional do Trabalho (OIT), apesar de todos os esforços para o combate da escravidão contemporânea e do trabalho infantil, as vítimas ainda são, majoritariamente, homens e mulheres, meninos e meninas de origem afrodescendente.
O racismo, sobretudo quando atrelado de forma interseccional ao sexismo e a outras formas de discriminação, como orientação sexual e nacionalidade, tem como resultado mais evidente a limitação de oportunidades de desenvolvimento pessoal e profissional de milhões de pessoas, com prejuízos à garantia de direitos. Diferentes formas de discriminação e preconceito se traduzem no mundo do trabalho em disparidades salariais, assédio moral e sexual, violência, entre outros. Déficits históricos de igualdade de oportunidade em razão de raça/cor e de outras variáveis são tema de importância estratégica para políticas públicas de inclusão socioprodutiva e de promoção de diversidade, com reflexos diretos sobre a promoção do trabalho decente e da igualdade. A desagregação de indicadores por raça/cor permite análises mais refinadas com potencial de influir em políticas públicas e corporativas, com foco no combate ao racismo institucional.
A mobilidade dos migrantes e o respectivo processo de inserção no mercado de trabalho tem sido tema de interesse de pesquisadores, reclamando o direcionamento de políticas públicas, voltadas ao acolhimento de diferentes culturas. A raça é elemento essencial para compreender as desvantagens no mercado de trabalho, inclusive dos estrangeiros, pois permanece como forma de divisão na oferta de oportunidades produtivas. As minorias também estão mais sujeitas a violências, atos de intolerância e discriminação, inclusive no mercado de trabalho. Nesse contexto, é importante destacar o Decreto nº 10.932, de 10 de janeiro de 2022, mediante o qual foi promulgada pelo Brasil a Convenção Interamericana contra o Racismo, a Discriminação Racial e Formas Correlatas de Intolerância, com o compromisso de erradicação total dessas práticas, pela convicção de que essas atitudes discriminatórias representam a negação dos valores universais e dos direitos inalienáveis e invioláveis da pessoa humana. A convenção leva em conta, por exemplo, que as vítimas do racismo, da discriminação racial e de outras formas correlatas de intolerância nas Américas são, entre outras, afrodescendentes, povos indígenas, bem como outros grupos e minorias raciais e étnicas ou que por sua ascendência ou origem nacional ou étnica são afetados por essas manifestações.
Assim, reclama-se o desenvolvimento de políticas públicas próprias. Espera-se que não tenhamos mais casos como o do congolês Moïse e, ainda, que este e outros crimes de preconceito e de intolerância sejam Wrmemente punidos pelas autoridades e veementemente repudiados por toda a sociedade, eliminando-se, em deWnitivo, o véu que causa a inadmissível cegueira racial no Brasil. Indispensável, ainda, que o Brasil estabeleça políticas públicas voltadas ao combate ao racismo estrutural e para o fomento de empregos para nacionais e estrangeiros no país, afastando a escravização e a precarização predatória do labor de trabalhadoras e trabalhadores, que, independentemente de sua origem, raça, sexo, orientação sexual ou cor, têm direito fundamental ao trabalho digno, seguro, saudável e protegido.
*LUCIANA PAULA CONFORTI – Vice-presidente da Anamatra, doutora em Direito, Estado e Constituição pela Universidade de Brasília – UnB, juíza do Trabalho do TRT da 6ª Região (PE), diretora de Formação e Cultura da Anamatra, Professora da Esmatra 6.
ARTIGO TRANSCRITO DO SITE JOTA