Ministério do Trabalho responsabiliza fabricante da Coca-Cola por trabalho escravo

Auditores apontam que motoristas trabalhavam em jornadas exaustivas, sem o tempo mínimo de descanso nem para dormir, colocando a sua vida e a de outros em risco

Uma fiscalização em dois centros de distribuição de produtos da Coca-Cola em Minas Gerais identificou 179 caminhoneiros e ajudantes de entrega sistematicamente submetidos a jornadas exaustivas que configuram, segundo os auditores responsáveis pela ação, condições análogas às de escravo. Entre agosto de 2015 e março de 2016, cada um deles realizou uma média de, ao menos, 80 horas extras por mês. Situações extremas incluíam ainda médias de 140 horas extras mensais e um dia inteiro de trabalho ininterrupto na mesma semana em que um trabalhador já enfrentara jornadas com mais de 12 e 14 horas.

Num caso que exemplifica a realidade desses trabalhadores, ocorrido em fevereiro de 2016, um motorista relatou que, após encerrar uma longa jornada às 0h30min, chegou em casa por volta das duas da manhã com a obrigação de retornar em poucas horas, às 6h30. “Tomou um banho, jantou e ficou vendo televisão, pois se dormisse não conseguiria levantar no horário de trabalho”, informou em seu depoimento aos fiscais. “Sabia que, se não fosse trabalhar, receberia advertência no outro dia.”

“São jornadas completamente indignas”, avalia Marcelo Campos, auditor fiscal que participou da ação, coordenada pela auditora Maria Dolores Brito Jardim. Segundo ele, além de deteriorar a saúde dos funcionários, tal ritmo de trabalho também traz perigos à população local por aumentar o risco de acidentes de trânsito. De acordo com o artigo 149 do Código Penal, são quatro elementos que podem definir condições análoga às de escravo no Brasil: trabalho forçado, servidão por dívida, condições degradantes e jornada exaustiva – em que o trabalhador é submetido a uma sobrecarga que acarreta danos à sua saúde ou até risco de morte. O crime prevê penas de dois a oito anos de prisão aos seus praticantes.

“São jornadas completamente indignas”, avalia Marcelo Campos, auditor fiscal

A Spal informou à Repórter Brasil que está analisando os autos de infração lavrados pelo governo federal para tomar as medidas necessárias. Diz também que está realizando ajustes operacionais relacionados à jornada dos caminhoneiros, mas nega existência de trabalho escravo em seus negócios.

Além de atuada pelo uso de mão de obra análoga à de escrava, a Spal foi multada pelo governo federal por extrapolar o limite de horas extras permitidos por lei, por não conceder ao menos 11 horas de descanso entre dois dias de trabalho e também por terceirizar o transporte de mercadorias de forma ilícita – um outro grupo de 229 caminhoneiros da Spal estava, segundo a fiscalização, sendo ilegalmente contratado por meio de empresas terceirizadas. Os autos de infração foram encaminhados para o Ministério Público do Trabalho, que ainda está analisando as ações a serem adotadas na esfera judicial.

Virando a noite

A fiscalização do governo federal analisou os controles de jornada da empresa durante sete meses, entre agosto de 2015 e março de 2016. Constatou que cada um desses 179 trabalhadores submetidos a jornadas exaustivas realizou, na média do período, ao menos 80 horas extras mensais. No caso mais grave, citado no início dessa matéria, um caminhoneiro fez uma média mensal de 140 horas extras. Isso equivale a um cotidiano diário médio de 14 horas e 22 minutos entre o início e o fim de cada jornada – já contabilizando a pausa de uma hora para o almoço – num hipotético mês de 26 dias trabalhados.

As consequências para a saúde e vida dos funcionários foram registradas no relato dos motoristas, colhido pelos auditores do Ministério do Trabalho. O cotidiano de poucas horas de sono provoca dores no corpo, estresse, ausência de convivência com a família e tempo de lazer praticamente nulo, pois o fim de semana é aproveitado para dormir e descansar.

Problema antigo

A fiscalização do Ministério foi motivada por diversas sentenças judiciais encaminhadas pela Justiça do Trabalho ao órgão, entre 2013 e 2014. Eram processos movidos por ex-motoristas da empresa. Em uma dessas sentenças, o juiz Márcio Toledo Gonçalves, da 5ª Vara do Trabalho em Belo Horizonte, afirmou que os empregados da Spal estavam submetidos a condições degradantes de trabalho “em razão de jornadas de trabalho extenuantes”.

“Havia jornadas começando entre quatro e cinco da manhã e se encerrando entre 22 e 23 horas. Eles não aguentavam e saíam da empresa”, diz a juíza Graça Freitas

Em outros casos semelhantes, na Vara do Trabalho de Ouro Preto, a juíza responsável, Graça Maria Borges de Freitas, ressalta em suas sentenças que a Spal já foi condenada em diversos processos movidos naquela vara onde identificou-se motoristas submetidos a jornadas exaustivas. Ela destaca também que o descumprimento sistemático da jornada legal viola a dignidade do trabalhador e, em caso de jornada exaustiva, é uma das possíveis situações que configuram trabalho análogo ao de escravo.

Esse motorista campeão de horas extras é funcionário da unidade da Spal em Contagem. Chama a atenção a sua jornada numa semana específica, em novembro do ano passado Após dois dias em que trabalhou mais de 14 horas numa terça-feira e mais de 12 horas na quarta, ele retornou à empresa às 6 horas da manhã da quinta para uma jornada que durou exatas 23h59min. Nesse período, apenas um surpreendente intervalo de 26 minutos foi registrado no controle de ponto do caminhoneiro, entre 23h25min e 0h01min. No sábado dessa mesma semana, o motorista teve que se afastar por problemas de saúde.

“Havia jornadas começando entre quatro e cinco da manhã e se encerrando entre 22 e 23 horas”, disse a juíza em entrevista à Repórter Brasil. Em alguns meses, segundo ela, isso acontecia de forma sistemática, fato que levou a condenações por danos morais. “Notava-se uma grande rotatividade porque o trabalho era de fato muito cansativo. Eles não aguentavam e saíam da empresa”, explica Graça Freitas.

Posição da empresa

A Spal Indústria Brasileira de Bebidas é uma subsidiária do grupo Femsa, engarrafadora de origem mexicana que fabrica produtos da Coca-Cola em diversos países da América Latina. Procurada pela Repórter Brasil, a Femsa informou que está analisando os autos de infração lavrados pelo governo federal para tomar as medidas jurídicas necessárias. Segundo a empresa, já estão sendo adotadas ações para promover “restrições operacionais”, como a revisão da malha logística, o monitoramento de rotas e novos modelos de veículos para entrega. A empresa diz ainda não reconhecer a prática de trabalho análogo à escravidão em seus negócios.

“Apesar da ocorrência da sobrejornada de trabalho remunerada nos termos da lei, nossas práticas envolvem a garantia das condições adequadas de conforto e higiene a todos os nossos colaboradores”, reiterou a empresa. Leia a íntegra das respostas da Femsa.

A Repórter Brasil também procurou a Coca-Cola Company, empresa detentora das marcas e que licencia a produção das bebidas para fabricantes como a Femsa. “A Coca-Cola Brasil tomou conhecimento da questão do excedente das horas extras trabalhadas pelos funcionários de Femsa, ainda que integralmente remuneradas, e já está acompanhando o plano de ação estipulado pelo fabricante para regularizar esta situação”, disse a empresa. Leia a resposta da Coca-Cola na íntegra.

A política de direitos humanos estipulada globalmente pela companhia estipula que os engarrafadores parceiros devem estar “em conformidade com todas as leis locais e nacionais aplicáveis referentes ao expediente e à hora extra”. A Coca-Cola Brasil afirma demandar que os seus parceiros estejam em conformidade com as exigências da legislação brasileira.

Nota da redação: O texto foi corrigido às 12h15 do dia 26 de agosto. A auditora fiscal Maria Dolores Brito Jardim é a coordenadora da fiscalização que responsabilizou a fabricante da Coca-Cola por trabalho em condições análogas às de escravo. Marcelo Campos participou da operação como auditor fiscal.

REPORTER BRASIL