Sobre a democracia interna nos tribunais brasileiros
Autor(a): Guilherme Guimarães Feliciano
Você certamente já ouviu dizer, amigo leitor, que “o Poder Judiciário é o guardião da democracia” (ou guardião último, diria eu; porque evidentemente há outros, a começar pelo próprio Parlamento). E, como você bem sabe, todos os poderes da República — e, logo, também o Poder Judiciário — emanam do povo (art. 1º, par. único, da Constituição). No Brasil, porém, os juízes, diversamente dos parlamentares e mandatários executivos, não são eleitos. É essencialmente a sua competência técnica que vai alçá-los à condição de magistrados, quando ingressam na carreira por concursos públicos de provas e títulos.
Nem por isso, entretanto, será certo afirmar que o Poder Judiciário brasileiro não é um poder “democrático”. Ele é, sim, tendencialmente contramajoritário (o que até pareceria antidemocrático, porque “democracia” vem do radical grego “demo”, reportando o governo do povo, da maioria); mas, ainda assim, um poder democrático. O cariz democrático, no âmbito do Judiciário, revela-se externamente (i.e., para o cidadão) não pelo voto, mas pelo acesso. Noutras palavras, são os elevados níveis de transparência — derivada do dever constitucional de motivação das decisões (CF, art. 93, IX) — e de contraditório sob publicidade (CF, arts. 5º, LV, e 93, IX) — a transformar o processo judiciário em um genuíno espaço público de diálogo e construção comunicativa (na melhor acepção habermasiana) — que conferem ao Judiciário a sua condição democrática e permeável.
Internamente, porém, o Poder Judiciário também precisa paulatinamente aprofundar os seus níveis de democracia, inclusive para se justificar constitucionalmente, imerso que está em um sistema de princípios constitucionais que abriga, entre outros, o princípio democrático e o princípio da participação. E princípios, na expressão de ROBERT ALEXY, não são outra coisa que não “Optmierungsgebote” — i.e., “mandados de otimização”. Logo, há que os otimizar institucionalmente.
E como fazê-lo, concretamente, nos dias atuais? Vejamos.
O ART. 102 DA LEI ORGÂNICA DA MAGISTRATURA E A CONSTITUIÇÃO DE 1988: O PROBLEMA DA RECEPÇÃO CONSTITUCIONAL
Pelo artigo 102 da Lei Orgânica da Magistratura Nacional (LC n. 35/79), os cargos de direção dos tribunais (presidentes, vice-presidentes, corregedores) só podiam ser ocupados pelos desembargadores mais antigos, compondo-se o eleitorado com o universo total de desembargadores (ou seja, eleitores e eleitos são todos juízes de 2º grau, embora a gestão depois alcance a todos, juízes de 1º e de 2º graus), que votam secretamente. Diversamente do que já ocorre, p.ex., no Ministério Público, os juízes de 1º grau — aqueles que judicam nas varas e nos juízos de entrada, exatamente os que estão mais próximos dos anseios do povo — não teriam qualquer poder de escolha ou eleição. Haveria a necessidade de uma reforma legislativa para que a capacidade eleitoral se estendesse a todos os magistrados?
Entendemos que não. A rigor, elas sequer seriam necessárias.
Com efeito, tratar-se-ia, a rigor, de tão-só conferir concreção a princípios constitucionais evidentes, fazendo-o por meio de leis em sentido material, como são os próprios regimentos internos dos tribunais (nesse sentido, veja-se, p.ex., o quanto decidido na ADI n. 1105/DF). Ora, as eleições diretas para a administração dos tribunais, alcançando juízes de 1º e 2º graus, conferirão maior concretude aos princípios constitucionais da gestão democrática, da participação e da própria impessoalidade administrativa. Isso não significará “politizar” o Judiciário; ou, ao menos, não mais do que já estão politizados os tribunais. Apenas se abrirá o debate interno a uma classe de juízes hoje alijada do processo de escolha eleitoral, apta a fazer ver, aos futuros dirigentes (que seguirão sempre sendo juízes de 2º grau), uma visão de mundo diversa, mais abrangente, quiçá mais próxima das necessidades reais dos cidadãos. De outro modo, a se manterem intactos os atuais colégios eleitorais, haverá sempre um inexplicável lapso entre a estrutura de governo dos tribunais judiciais e a sua magna missão institucional: preservar, reproduzir e aprofundar o regime democrático-republicano.
Nessa alheta, J. J. GOMES CANOTILHO bem explicita o princípio democrático ao afirmar que o Estado Democrático de Direito baseia-se em dois aspectos: representação e participação. Este derradeiro princípio, por sua vez, baseia-se na dimensão participativa como componente essencial da democracia, à vista da premissa antropológico-política segundo a qual o Homem só se transforma em Homem, de modo integral, com o pleno exercício de sua autodeterminação. Assim, os direitos de participação na vida política e na condução de seus destinos são manifestações indispensáveis da dignidade do cidadão e da constituição do Estado Democrático de Direito, tanto no plano macropolítico como no seio das grandes instituições republicanas. Na mesma esteira, aliás, a Magistratura do Trabalho aprovou, por aclamação, a tese de eleições diretas nos tribunais, isto por ocasião do XIII Congresso Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho (CONAMAT), atendendo-se, no particular, ao máximo critério de equanimidade política, tal como herdado das premissas primeiras da carta dos Probos Pioneiros de Rochdale (Inglaterra, 21.12.1884): “one man, one vote”.
Não por outra razão, a ANAMATRA (Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho) e todas as vinte e quatro AMATRAs vêm se organizando nacionalmente, desde 2013, no sentido de apoiar e pleitear as eleições diretas nos tribunais do país. Para tais entidades, como já apontado, seria despicienda qualquer alteração legislativa ou constitucional para ser concedido o direito de voto a todos os magistrados nas eleições dos cargos de direção dos tribunais que integram, bastando que os tribunais recorram, internamente, à devida interpretação conforme a Constituição de 1988, notadamente em relação ao artigo 102 da LOMAN, e assim institucionalizem, por seus órgãos administrativos, as eleições diretas para seus cargos de administração. Vale lembrar que, pela interpretação conforme (“verfassungskonformen Auslegung”), “se uma lei pode ser interpretada em dois sentidos, um que a torne incompatível com a Lei Suprema, outro que permite a sua eficácia, a última interpretação é a que deve prevalecer” (LÚCIO BITTENCOURT1).
E é assim porque, no plano regimental, poderia cada um dos tribunais do país positivar o sufrágio ampliado para as eleições diretas de seus cargos de presidente e vice-presidente, como também para as corregedorias e vice-corregedorias (posição majoritariamente extraída do Conselho de Representantes da ANAMATRA, e depois sufragada em tese do 17º Congresso Nacional dos Magistrados do Trabalho, ocorrido em Gramado/RS). Tal sufrágio dar-se-ia por intermédio do voto direto, secreto e facultativo dos magistrados vitalícios de primeiro e segundo graus, baseando-se na correta tese de que, à luz da autonomia administrativa dos tribunais — aos quais compete “eleger seus órgãos diretivos e elaborar os seus regimentos internos” (artigo 96, I, “a”, da Constituição) — a mera alteração regimental já bastará para que um tribunal passe a adotar eleições diretas para a respectiva administração, a despeito da vetusta norma da LC n. 35/1979, ditada que foi em tempos pouco alvissareiros para a democracia nacional.
De fato, a partir de uma clara autorização constitucional (CF, arts. 96 e 99), o tribunal, por seu órgão deliberativo soberano (plenários ou órgãos especiais), estará revendo seu regramento interno precisamente para se aproximar do ideal democrático que rege os três poderes da República. Estará provendo democracia — um dos claros objetivos políticos da Constituição-cidadã — para além do que inicialmente dispusera a respectiva lei orgânica, ainda sob a égide da Constituição de 1967/1969. E onde há progresso político e social, não há, em tese e princípio, restrições de fundo legal-formal. Os princípios constitucionais sabidamente prevalecem sobre as regras alvejadas pela decrepitude do tempo. E qualquer outra visão de mundo significará, em alguma medida, pactuar com os insensíveis e intermináveis juízos de subsunção próprios de uma compreensão formal-positivista já ultrapassada na doutrina constitucionalista. Ademais, o próprio Supremo Tribunal Federal já externou que os regimentos internos funcionam, para a administração dos tribunais, como lei em sentido material; e, nesse sentido, não poderiam restringir os colégios eleitorais, porque malfeririam a Constituição (v., e.g., STF, ADI 3.566, Rel. p/ o ac. Min. Cezar Peluso, julgamento em 15.02.2007, Plenário, DJ 15.06.2007); mas poderiam, sustenta-se agora, ampliá-los. A ver:
“O objeto da impetração é apreciar os limites dos poderes normativos (ou nomogenéticos, para ser mais preciso) dos tribunais – o que se radica no papel dos regimentos internos –, é interpretar o art. 102 da Lei Orgânica da Magistratura Nacional, à luz do texto constitucional. O espaço normativo dos regimentos internos dos tribunais é expressão da garantia constitucional de sua autonomia orgânico-administrativa (art. 96, I, a, CF/1988), compreensiva da ‘independência na estruturação e funcionamento de seus órgãos’.” (MS 28.447, Rel. Min. Dias Toffoli, j. 25.08.2011, Plenário, DJE 23.11.2011 [g.n.])
Ou, mais categoricamente:
“Aos tribunais compete elaborar seus regimentos internos, e neles dispor acerca de seu funcionamento e da ordem de seus serviços. Esta atribuição constitucional decorre de sua independência em relação aos Poderes Legislativo e Executivo. Esse poder, já exercido sob a Constituição de 1891, tornou-se expresso na Constituição de 1934, e desde então vem sendo reafirmado, a despeito dos sucessivos distúrbios institucionais. A Constituição subtraiu ao legislador a competência para dispor sobre a economia dos tribunais e a estes a imputou, em caráter exclusivo. Em relação à economia interna dos tribunais a lei é o seu regimento. O regimento interno dos tribunais é lei material. Na taxinomia das normas jurídicas o regimento interno dos tribunais se equipara à lei. A prevalência de uma ou de outro depende de matéria regulada, pois são normas de igual categoria. Em matéria processual prevalece a lei, no que tange ao funcionamento dos tribunais o regimento interno prepondera. Constituição, art. 5º, LIV e LV, e 96, I, a. Relevância jurídica da questão: precedente do STF e resolução do Senado Federal.” (ADI 1.105-MC, Rel. Min. Paulo Brossard, j. 03.08.1994, Plenário, DJ 27.04.2001 [g.n.])
É, de fato, como pensamos. Mas esse é apenas o ponto de partida. Admitida a tese, há que equacionar as suas aparentes aporias operacionais. Vejamos.
PODER JUDICIÁRIO E DEMOCRACIA INTERNA. QUEM DEVE VOTAR?
Como visto, a democracia interna do Poder Judiciário encontra o seu “telos” ideal nas chamadas “eleições diretas” para os cargos diretivos dos tribunais, aí entendidos os cargos de presidência e de vice-presidência(s) (e.g., vice-presidência administrativa e vice-presidência judicial, como se dá no TRT 15 e no TRT 2), como também os cargos de corregedoria e vice-corregedoria (onde houver); e, em uma extensão lógica, aos próprios cargos de direção das escolas judiciais (diretor, vice-diretor, coordenador). Por “eleições diretas” entende-se, como visto, o sufrágio estendido aos juízes de 1º grau, no tocante àquelas escolhas; porque são eles, de fato, que há mais de um século veem-se alijados dessa condição comezinha de “cidadania judiciária ativa”.
Mas o processo de democratização interna do Judiciário não se esgota nesse sufrágio interno universal. Envolve todos os demais instrumentos que caminham para uma gestão compartilhada dos tribunais. Aqui se incluem, portanto, iniciativas e instrumentos como as consultas regimentais, especialmente se obrigatórias (a exemplo daquela recentemente aprovada pelo TRT da 4ª Região, que reportarei adiante), o poder de iniciativa de emenda regimental (a exemplo daquele formalmente reconhecido à Amatra 17 e incidentalmente reconhecido à Amatra XV) e o próprio direito de assento e voz da Anamatra (CSJT) e das Amatras (e.g., Amatras XV e 18). Nada obstante, é mister reconhecer que os vários instrumentos de democracia interna que têm maturado nas instituições judiciárias contemporâneas — e muito particularmente no Brasil, graças ao trabalho de conscientização política das associações de juízes — vinculam-se a um específico modelo de democracia interna que não se confunde, absolutamente, com o modelo de democracia judiciária universal que outros sistemas jurídicos adotaram.
No modelo norte-americano, p.ex., os juízes estaduais são geralmente eleitos diretamente pelos cidadãos, a partir de campanhas locais, respaldando, no âmbito do Poder Judiciário, a ideia de que “todo poder emana do povo” (é assim em 33 dos 50 Estados dos EUA). Os candidatos fazem campanha, arrecadam fundos, debatem publicamente etc. Curiosamente, já não é assim na Supreme Court, em que os juízes são indicados pelo Presidente da República (como no nosso STF); e, de fato, o modelo de eleições diretas tem sido severamente criticado no Direito e na literatura, mesmo dentro dos EUA2.
Esse, porém, não é o modelo constitucional da Justiça brasileira, como tampouco poderia ser o da Justiça do Trabalho brasileira. Entre os juízes do Trabalho, face à evolução institucional verificada sobretudo entre a Constituição de 1946 e a Lei n. 6.087/1974, a escolha dos juízes passa por um processo meritocrático a que se denominou concurso público (de provas e títulos). Com isso, preservou-se, por um lado, o conceito de independência técnica do juiz, fundamental para as democracias (porque causaria espécie discutir “independência técnica” de quem se pudesse dispensar o perfil técnico); e animou-se, por outro lado, a própria ideia de que o Direito é uma ciência (ideia sincerame nte questionável, tanto outrora — como se dessumiria da célebre frase do romano CELSO3 — como sobretudo agora, no raiar da pós-modernidade e da consequente desconstrução das grandes narrativas teoréticas). Com efeito, se realmente é ciência — e vamos evitar adentrar a este mérito —, precisa de doutos. Pessoas versadas e testadas, que passem a integrar um corpo de magistrados. É, afinal, a síntese acabada entre as figuras romanas do “praetor” e do “iudex”; dos predicamentos da “auctoritas” e da “notio” (ou “cognitio”).
Nesse encalço, parece certo que a democracia do modelo de Judiciário que secularmente adotamos, inspirado no paradigma europeu-continental, diz muito mais com a fundamentação jurídica em uma arena pública e dialógica (e volto a J. HABERMAS4) — a saber, o processo judicial, informado pelos princípios da publicidade e do contraditório —, em uma dimensão microscópica; e, em uma dimensão macroscópica, aquele caráter democrático dirá com o próprio acesso de todo e qualquer cidadão versado às carreiras da Magistratura, desde que aprovado nos respectivos concursos (mas independentemente de cor, sexo, idade, estado civil, orientação sexual e afetiva, classe social etc.).
Nesse modelo, que a Constituição de 1988 — na esteira de todas as cartas constitucionais anteriores — indubitavelmente albergou, falar em democracia interna é falar em autogestão; logo, qualquer desenvolvimento do conceito deve envolver, necessariamente, a participação da Magistratura na gestão do Poder Judiciário. Participar da gestão, como alhures se disse, tanto significa o direito de votar como, por outro, direitos conexos como o assento e voz e o próprio poder de iniciativa de emenda regimental. Mas a autogestão, o nome já o diz, envolve os membros do Poder Judiciário. Não toda a sociedade civil. Porque não é este o modelo constitucional brasileiro.
Nessa precisa medida, admitir alternativas atípicas de democratização, como a concessão de voto, assento e/ou voz para os servidores dos tribunais judiciais ou para a Ordem dos Advogados do Brasil — sem qualquer demérito aos relevantíssimos serviços prestados pela OAB à democracia, especialmente nos últimos quarenta anos, e ao papel fundamental dos serventuários para o funcionamento da Justiça — é um contrassenso teórico e discursivo. E, para mais, poderá significar um retrocesso institucional. Porque exatamente retira dos legítimos membros do Poder a noção de que os instrumentos de democracia interna que lhes foram franqueados, pessoalmente (no voto direto) ou por suas legítimas representações (as associações), devem-se ao reconhecimento de um vínculo de pertencimento: são eles, juízes de 1º grau, uma fração da instituição (a Magistratura) que historicamente era alijada das decisões superiores. Essa relação de pertencimento não existe em relação a advogados e serventuários: são eles essenciais à Justiça, mas definitivamente não integram o Poder Judiciário. E esse raciocínio vale, ademais, não apenas para os juízes de 1º grau; é também uma garantia política para os próprios desembargadores que não compõem os órgãos especiais deliberativos, ainda que em um âmbito menos visceral (porque o alijamento em geral resolve-se com o decurso do tempo). Essas parcelas da Magistratura, se não votam, são ouvidas por intermédio de suas associações, porque geralmente não podem falar por si.
Institucionalizar o voto e/ou o assento e voz para corporações ou segmentos externos, por seu turno, sinaliza que esses instrumentos de democratização institucional não se prestam a integrar a autogestão da Magistratura, mas sim a engendrar a ampla cogestão dos tribunais, com direta participação da sociedade civil, comprometendo a própria independência administrativa prevista no artigo 99 da Constituição. Nessa ordem de ideias, adiante haveria que se cogitar do voto e/ou assento para sindicatos representativos das grandes categorias profissionais e econômicas, ou para as representações eleitas da sociedade civil (como se dá com o CNJ, ut CF, art.103-B, XIII), e assim sucessivamente. Todas legitimadas a opinar ou votar, na perspectiva filosófica, se partimos da premissa cogestionária.
Não é isto, em absoluto, o que decorre do sistema constitucional em vigor. Pelo atual texto constitucional, a Magistratura nacional — e, é claro, os tribunais que a abrigam — são instituições permanentes a que a vontade popular originária acometeu a missão constitucional de preservar e desenvolver o Estado Democrático de Direito, não apenas para fazer valer a vontade concreta das maiorias e os direitos fundamentais das minorias, como também — e sobretudo — para fazer valer os princípios constitucionais estruturantes que animam a democracia republicana, entre os quais os princípios da representação e da participação (J. J. GOMES CANOTILHO5), que são extensões do próprio princípio democrático, inerente à “sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos” vaticinada no Preâmbulo da Constituição de 1988. Nesse contexto, é cediço já não se conceber que os órgãos administrativos soberanos dos tribunais judiciais possam deliberar sem a participação ativa de todos os juízes, pessoalmente ou representados pelas suas entidades associativas (cujas diretorias se formam pelo voto direto e universal de todos os juízes de 1º e 2º graus). Pela via do assento e voz, p.ex., permite-se aos juízes exercerem, com maior densidade, o seu direito constitucional de representação legítima, nos termos do art. 5º, XXI, da Constituição da República. Mas seguimos tratando de autogestão; não de gestão universalizada (ou de sufrágio universal).
Com efeito, no plano representativo, são exclusivamente as associações de juízes que falam em nome de integrantes do Poder Judiciário (i.e., membros de Poder), respaldando a legitimidade das decisões internas tomadas por um dos Poderes da República. A Ordem dos Advogados do Brasil, os sindicatos profissionais e econômicos e as associações de servidores não representam integrantes do Poder Judiciário trabalhista, mas corpos civis ou administrativos auxiliares. Podem e devem ser ouvidos, nos feitos que envolvam seus interesses diretos. Mas não há sentido em lhes conferir titularidade para manejar os instrumentos de democratização interna do Judiciário, porque, ainda que sejam essenciais à Justiça (como se dá com a Advocacia, “ex vi” do art. 133 da Constituição), não são orgânicos (exatamente porque não consubstanciam órgãos do Poder Judiciário); e, no segmento das representações extraorgânicas, apenas o Ministério Público têm assento e voz em tribunais, representando toda a sociedade civil. Exceções a essa regra são o CNJ e o CJF, que conferem assento e voz a representantes do Conselho Federal da OAB; mas o fazem porque são conselhos — pensados originalmente para figurar fora das estruturas judiciárias — e não tribunais.
A se sufragar voto e/ou assento e voz para servidores, para sindicatos e/ou para a OAB, estaríamos migrando para o modelo anglo-saxônico de democracia judiciária (e, registre-se, com uma terrível corruptela: leis e regimentos estariam elegendo unilateralmente representantes “ad hoc” que ela própria, sociedade civil, não elegera). Contra o modelo constitucional em vigor. Contra qualquer paradigma jurídico estrangeiro apreciável. E contra a ideia de autogestão da Magistratura. Daí porque, aliás, os servidores da Câmara e do Senado não votam para eleger as respectivas mesas diretoras; somente votam os parlamentares. A lógica é rigorosamente a mesma. Autogestão pressupõe participação ampla, porém orgânica, sob pena de desnaturação constitucional.
O PASSO À FRENTE. OU — DE NOVO — O PIONEIRISMO GAÚCHO
As reflexões anteriores monstraram a você, leitor, como se dá a escolha dos dirigentes de todos os tribunais de Justiça, dos tribunais regionais federais, dos tribunais regionais do trabalho e dos tribunais militares (para não citar os outros, que não se estruturam em torno de carreiras típicas). Por todo o país, não mais que 10% da Magistratura nacional escolhem os dirigentes das administrações dos tribunais. De regra, votam e são elegíveis apenas desembargadores, concentrados nas capitais e/ou sedes regionais.
Já não é exatamete assim, porém, na Justiça do Trabalho do Rio Grande do Sul.
No dia 15 de dezembro de 2017, tomaram posse os primeiros presidente e vice- presidente eleitos com a participação, em um mesmo pleito, de toda a Magistratura do Trabalho: de juízes vitaliciandos à desembargadora decana, todos votaram. E o resultado das urnas foi acolhido pelo tribunal pleno, com estrito respeito aos termos do artigo 108 da Lei Orgânica da Magistratura nacional.
Houve, é certo, honrosas e imprescindíveis experiências anteriores, na própria Justiça do Trabalho (para não referirmos modelos ainda antes testados em alguns poucos tribunais de Justiça). Citem-se, no particular — com todas as loas —, o TRT da 1ª Região (Rio de Janeiro), o TRT da 16ª Região (Maranhão) e o TRT da 17ª Região (Espírito Santo), que já haviam deliberado alterar seus regimentos para tornar eleitores também os juízes de primeiro grau, ao ensejo de intensa campanha associativa coordenada pela ANAMATRA. Apenas por isso, esses tribunais ─ e os desembargadores que então os compunham ─, como as respectivas associações regionais, têm decerto seu lugar reservado na memória universal da Justiça brasileira. Destemidos, souberem ousar; e ousaram para o bem. Tais experiências, todavia, não se perenizaram, porque o Conselho Superior da Justiça do Trabalho afinal compreendeu ─ equivocadamente, a nosso ver ─ que tais inovações violariam o precitado artigo 108 da LOMAN. Bem, já falamos disto logo acima. Interpretação literal, a desconhecer a evolução dos tempos, não é decerto a melhor interpretação para qualquer texto legal.
No entanto, para os juízes trabalhistas do Rio Grande do Sul, um novo e importante horizonte se abriu. Um novo modelo foi concebido, de feitio consensual, com três características mais evidentes:
(a) a previsão regimental de uma consulta oficial que colhe votos de juízes de segundo e de primeiro graus (inclusive vitaliciandos);
(b) a atribuição de pesos proporcionais aos votos, já que os desembargadores são bem menos numerosos que os magistrados de primeira instância; e
(c) a restrição do sufrágio à eleição do presidente e do vice-presidente, excluindo-se as figuras do corregedor e do vice-corregedor regional.
Não é, como se vê, o que tomaríamos, à vista dos argumentos aqui desfilados, como “modelo ideal”. Mas, já diziam os antigos, “o ótimo é inimigo do bom”. E o novel modelo gaúcho é, sim, muito bom.
Registre-se que, no caso do TRT da 4ª Região, a Magistratura experimentou altos e baixos até se alcançar a fórmula ideal, no momento histórico apropriado. Os desembargadores que se candidataram aos cargos de direção, no segundo semestre de 2017, apresentaram-se em debates públicos e os magistrados foram chamados à efetiva participação. O resultado fala por si: menos de 2% de abstenção entre os juízes eleitores. Optou-se pelo projeto de gestão que, no sentimento da maioria dos juízes, melhor atendia aos interesses do tribunal, da jurisdição e da cidadania.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
À vista de tudo quanto exposto até aqui, e a despeito das decisões refratárias que a respeito tem prolatado o E. Conselho Superior da Justiça do Trabalho (e.g., PCA n. 0003554-59.2016.5.90.00006, no caso do Rio de Janeiro), é forçoso concluir que:
(a) há vários mecanismos de democracia interna maturando, atualmente, no Poder Judiciário nacional. Citem-se, como tais, não apenas o amplo sufrágio interno para a escolha dos cargos de administração dos tribunais — que alcança os juízes de 1º grau e terá de vir em algum momento —, mas também as consultas eleitorais regimentais, o poder de iniciativa de emendas regimentais e o próprio assento e voz das associações de juízes. Todos esses mecanismos realizam os princípios constitucionais da democracia e da participação, consolidando a autogestão do Poder Judiciário, inerente à sua própria independência constitucional (CF, art. 2º); e que
(b) não atende ao conceito de autogestão da Magistratura, e tampouco às atuais balizas constitucionais do modelo judiciário brasileiro, a conferência da titularidade para o manejo de semelhantes instrumentos, por via de lei ou de regimento, a corporações ou segmentos externos à Magistratura.
A alternativa a essa derradeira restrição seria modificar o modelo constitucional de acesso à Magistratura, tornando-a eleita pelo sufrágio universal, como se dá, p. ex., em alguns Estados norte-americanos (p. ex., o Estado da Geórgia, onde a eleição para mandato de magistrado judicial pressupõe a obtenção de mais de cinquenta por cento dos votos dos eleitores em turno único; se não alcançado este mínimo de votos, dá-se segundo turno em que concorrem os dois mais votados). Neste caso, democracia interna e sufrágio universal confundir-se-iam, para todos os efeitos, sem a necessidade de corpos intermediários quaisquer.
Mas tal modelo, sobre ser incompatível com garantias constitucionais pétreas como a própria vitaliciedade dos juízes (CF, art. 95, I), não apresenta quaisquer vantagens do ponto de vista político-administrativo. Ao revés, vale aqui parafrasear o ex-Ministro do STF, Carlos AYRES BRITTO: a rigor, o que confere legitimidade técnica ao Poder Judiciário brasileiro é justamente a sua condição única de Poder profissionalizado. Em duas expressões: democracia interna com independência externa. Eis a melhor receita. Vai nesse encalço o modelo recentemente aprovado e implementado pelo Tribunal Regional do Trabalho da 4ª Região, que — a nosso ver — deve servir de inspiração para outros tribunais. Democratizar, antes de “politizar”, humaniza. Inclusive no Poder Judiciário.
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1 BITENCOURT, Lúcio. O controle jurisdicional da constitucionalidade das leis. 2ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 1968, pp.95-96. V. também MIRANDA, Jorge. Manual de Direito Constitucional. 2ª ed. Coimbra: Coimbra Editora, 1988. t. II. pp. 232 e ss.
2 Cf., nesse sentido (e ilustrativamente), a novela The Appeal, de John GRISHAM. Há tradução para a língua portuguesa (GRISHAM, John. O Recurso. São Paulo: Rocco, 2008). Entre outros aspectos, o texto denuncia, a partir de uma história fictícia, os meandros de corrupção que alimentam o modelo de eleições universais para juízes de condados (counts) e afins.
3 “Ius est ars boni et aequi” (“O Direito é a arte do bom e do justo”).
4 Cf., e.g., HABERMAS, Jürgen. Moralbewusstsein und kommunikatives Handeln. Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1983. p.131. Ou, no Brasil, HABERMAS, Jürgen. Direito e Democracia: entre facticidade e validade. Trad. Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1997. v. I. pp.51 e ss.; 306 e ss.
5 Cfr., e.g., CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 3ª ed.. Coimbra: Almedina, 1999. pp.334 e ss. (= igualdade democrática no Estado de Direito).
6 In verbis: “PROCEDIMENTO DE CONTROLE ADMINISTRATIVO – TRIBUNAL REGIONAL DO TRABALHO DA ia REGIÃO – EMENDA REGIMENTAL N° 24/2015 – PARTICIPAÇÃO DE MAGISTRADOS DE PRIMEIRO GRAU NA ELEIÇÃO PARA CARGOS DE DIREÇÃO DA CORTE – IMPOSSIBILIDADE. 1. No caso, trata-se de proposta de emenda regimental aprovada pelo Tribunal Pleno do Tribunal Regional do Trabalho da ia Região que, acrescendo o art. 21-A ao seu Regimento Interno, passou a permitir a participação de juízes de primeiro grau no processo eletivo do Presidente e Vice-Presidente da Corte. 2. A edição da emenda regimental combatida é ato tipicamente administrativo que irradia efeitos para além de interesses meramente individuais, consubstanciando matéria de amplo interesse da Justiça do Trabalho, sujeitando-se, portanto, ao controle de legalidade por este Conselho, especialmente à luz da existência de regra própria a respeito. 3. O Supremo Tribunal Federal proclamou, ao ensejo do exame da Medida Cautelar na ADI 3.976/SP, bem como da ADI 3.566/DF, a recepção do art. 102 da Lei Orgânica da Magistratura Nacional pela Constituição Federal.4. Logo, conferir aos tribunais a possibilidade de ampliarem a participação eleitoral de seus cargos diretivos, mediante ato regimental próprio, redundaria, além da indevida interferência em área constitucionalmente reservada à lei complementar (art. 93 da CF), no surgimento de conflitos político-partidários que denigrem o prestígio e o papel institucional do Poder Judiciário. 5. Ademais, a sessão do Pleno em que aprovada a proposta de emenda regimental violou o critério da anualidade previsto no próprio Regimento para apreciação de suas emendas. Procedimento de Controle Administrativo conhecido e, no mérito, provido para declarar nulo o art. 21-A do Regimento Interno do Tribunal Regional do Trabalho da 1ª Região”.
Guilherme Guimarães Feliciano – Juiz Titular da 1ª Vara do Trabalho de Taubaté/SP. Professor Associado II do Departamento de Direito do Trabalho e da Seguridade Social da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP). Livre-Docente em Direito do Trabalho e Doutor em Direito Penal pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. Doutor em Direito Processual pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa. Presidente da Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho (ANAMATRA), gestão 2017-2019. E-mail: [email protected]
* Presidente da AMATRA IV