Trabalho e trabalhador em tempos de pandemia

Noemia Porto e Luiz Eduardo Fontenelle*

 

A súbita e avassaladora eclosão da pandemia de Covid-19 tem levado  especialistas, das mais variadas áreas do conhecimento, a preconizarem o surgimento de uma nova realidade global, na esteira de uma profunda reflexão sobre as atuais visões de mundo. Preveem, assim, mudanças revolucionárias de modelos de desenvolvimento socioeconômico e  ambiental, políticas e posturas governamentais, padrões de comportamento e convivência.

O mundo do trabalho, dada sua centralidade sobre indivíduos, coletividades e sistemas econômicos, evidentemente não  poderia ficar imune a tamanha inflexão histórica. De forma surpreendente, a crise fez redescobrir, ao menos nos países  centrais do capitalismo, a importância do lado humano da atividade laboral e de sua imprescindibilidade na formação e no gerenciamento da economia e, consequentemente, na geração de riqueza. Algo que vinha sufocado, ao longo das últimas quatro décadas, e até muito recentemente, pela predominância de um pensamento que proclamava a  obsolescência desse fator no processo produtivo e a inexorabilidade de sua substituição pelas novas tecnologias.

Diante da ameaça de colapso total de suas economias, e do consequente esgarçamento de seu tecido social, governos de países como Reino Unido, Itália, França, Espanha, Portugal, Alemanha e até mesmo os Estados Unidos responderam à mudança radical de paradigma e vêm adotando massivas medidas intervencionistas, preservando diretamente postos e
rendas do trabalho, autônomo ou assalariado, nos setores público e privado.

Transposta à realidade brasileira, tal reflexão nos leva a uma irônica e desconcertante constatação: o “moderno” nos conduz ao passado, e o “antigo” é que nos leva ao futuro. A “Reforma Trabalhista” de 2017 (Lei nº 13.467), e seus desdobramentos, contidos na Lei nº 13.874/2019 (“Liberdade Econômica”) e nas Medidas Provisórias 905 (“Contrato
Verde e Amarelo”), 927 e 936, inspiram-se e refletem exatamente o velho modelo eclipsado pela crise, centrado nas  políticas de austeridade fiscal, flexibilização e desregulamentação de direitos, precarização das relações de trabalho, mercantilização da pessoa do trabalhador e alijamento seletivo da negociação coletiva.

Por outro lado, o Brasil conta com o sistema que, liderado pela Constituição de 1988 e integrado pelas Convenções internacionais que recepciona, promove a revalorização do lado humano do trabalho, oferecendo, já há mais de 30 anos, ferramentas preciosas, necessárias e compatíveis com a nova realidade. As disputas em torno dos sentidos da Constituição, quanto aos direitos sociais, recolocam o tema do que seria “modernidade”.

Como negar, por exemplo, que a conjugação dos fundamentos republicanos do valor social do trabalho e da dignidade da pessoa humana, inscritos no art. 1º da Constituição, esteja em perfeita sintonia com a essencialidade do fator humano do trabalho? Como concluir que essa diretriz constitucional não convirja para a conclusão que a crise tornou tão  evidente, ou seja, que os direitos sociais e do trabalho não são “obstáculos”, mas, muito ao contrário, atributos de cidadania absolutamente indispensáveis para o equilíbrio econômico e o bem-estar de toda sociedade democrática?

Como não reconhecer, justo nestes tempos nos quais a união e a solidariedade se fazem ainda mais necessárias e primordiais, a atualidade da lição da Constituição de 1988, que — ao valorizar as entidades sindicais como legítimas representantes dos trabalhadores, e proclamar o reconhecimento dos acordos e convenções coletivas de trabalho — demonstra à sociedade civil que as soluções conjuntas, negociadas e respeitosas dos primados constitucionais são as mais eficazes na solução dos conflitos atinentes às relações laborais?

Como não se deixar admirar pela grandiosa amplitude do artigo 7º da Constituição Federal, que, ao estender sua  proteção a todos os trabalhadores, e não apenas ao segmento específico dos empregados, indica de forma clara e visionária, desde 1988, o caminho da inclusão social? Pois se não é exatamente a inclusão social que atualmente se
aponta, em todo o mundo, como a única saída para romper o gigantesco impasse que ameaça implodir o sistema econômico? Ignorar sinalização tão clara é continuar a trafegar na contramão, negar garantias básicas de sobrevivência e virar as costas aos 41% de trabalhadores informais do país, que o mercado insiste em chamar de “invisíveis”, em que pese a crueza implacável da condição de miserabilidade a que são relegados, a perpassar nossos olhos todos os dias, no campo e nas ruas das grandes cidades. Da mesma forma, o chamado “empreendedorismo” que nada empreende, na  medida em que apenas retira dos antigos trabalhadores formalizados essa condição, e os coloca “por conta própria”.

A concepção de trabalhador não está vinculada à figura clássica do empregado. Em situações de pobreza e de exclusão, a divisão juridicamente relevante entre formalizados e não formalizados no mercado não consegue se traduzir em  referência indutora de igualdade para os cidadãos. Torna-se pertinente uma visão mais abrangente, que englobe todos aqueles que necessitam viver do seu trabalho, ainda que tenham imensas dificuldades de inserção no mercado  formalizado.

Acolher essa grande massa de trabalhadores sob o manto da tutela onstitucional do trabalho constitui tarefa da mais alta prioridade e mesmo transcendental, porquanto diretamente ligada à superação do principal problema do país, a atávica desigualdade social que segue a ensombrar sua História. Há um imenso desafio a ser enfrentado pela Justiça do  trabalho na tarefa de continuamente ressignificar o alcance do art. 114 da Constituição, que, por força de emenda,  atribui-lhe a competência para as relações de trabalho, e não apenas para as relações de emprego. É necessário repensar  a tradição da dogmática trabalhista e da jurisprudência dos tribunais que tem mantido a compreensão de que os direitos sociais elencados na Constituição e na CLT têm como destinatários, senão exclusivos, mas ao menos preferenciais, os
trabalhadores empregados (urbanos e rurais).

O tempo, enfim, é de profundas incertezas e reclama mudanças. No entanto, afortunadamente, o Brasil possui, na sua Constituição e nas normas internacionais que a integram, um marco regulatório capaz de dar as respostas necessárias ao enfrentamento da crise e à adaptação do mundo do trabalho ao novo panorama global pós-pandemia. Para tanto, é crucial que os responsáveis pelas políticas públicas e os integrantes do sistema de Justiça jamais percam de vista o compromisso firme com a efetividade da Constituição, por sua visão lúcida, abrangente e cada vez mais atual,  privilegiando o fator humano do trabalho na rota de uma nova sociedade, inclusiva, livre, justa e solidária.

*Noemia Porto é presidente da Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho (Anamatra), e Luiz Eduardo Fontenelle é membro do Conselho Fiscal da Anamatra

Transcrito de O Globo